Em março de 2017, a adestradora e cosplayer Kelly Anderson passou por um momento devastador. Chai, sua gata de cinco anos, comeu um pedaço de plástico e teve de fazer uma cirurgia para removê-lo do sistema digestivo.

O procedimento foi bem-sucedido, mas o alívio logo se transformou em desespero: Chai morreu devido a um coágulo de sangue pós-operatório.

Cinco anos depois, Kelly está feliz com sua nova-velha companheira: Belle, clone de Chai, nascida em agosto de 2021.

Humanos agora têm o poder de clonar seus pets, e essa indústria está florescendo

O procedimento que deu origem à gatinha Belle foi realizado pela ViaGen Pets & Equine, primeira grande empresa de clonagem de animais de estimação dos Estados Unidos e uma das principais do mundo.

Em operação comercial desde 2015, o laboratório não revela números exatos, mas afirma já ter produzido "milhares de clones".

"Filhotes nascem toda semana", diz ao UOL Lauren Aston, gerente da ViaGen.

A empresa foi responsável por clonar duas cadelas para a atriz Barbra Streisand. Miss Violet e Miss Scarlett foram criadas a partir do DNA de Samantha, da raça Coton de Tulear, que morreu em 2017, aos 14 anos.

Como funciona a clonagem de pets

O nascimento de Belle é o mais recente capítulo de uma história que começou com a ovelha Dolly, primeiro mamífero replicado em laboratório.

Em 1996, cientistas escoceses provaram ser possível reprogramar o DNA de uma célula adulta de um tecido qualquer para servir como célula embrionária e dar origem a outro ser idêntico.

A técnica se chama Transferência Nuclear de Células Somáticas (SCNT, na sigla em inglês) e é a mesma usada para clonar Chai.

O processo, normalmente, leva cerca de um ano, mas o de Chai demorou quatro.

A ViaGen não explicou a razão do atraso. A hipótese de Kelly é que houve uma queda na quantidade e na qualidade das células da gata, já que o corpo dela teve de passar uma noite congelado até a retirada de amostras. O recomendado é usar animais vivos ou imediatamente mortos.

Nunca quis trazer minha gata de volta dos mortos. Eu só queria uma parte dela comigo. Chai era muito jovem quando morreu. Era minha alma gêmea
Kelly Anderson, 33, tutora de Chai e seu clone, Belle

Afinal, o que é um clone?

Clonagem não é uma "ressurreição", não engana a morte —como no clássico filme de terror "Cemitério Maldito", baseado na obra de Stephen King.

O animal será biologicamente idêntico ao original, como um irmão gêmeo nascido anos depois, mas pode ter comportamento e personalidade totalmente diferentes.

Até a aparência pode não ser igualzinha: cor e textura do pelo, por exemplo, podem variar devido a fatores como alimentação, estresse e ambiente.

É esse o caso de Belle. Ainda que tenha o mesmo DNA de Chai e compartilhe traços de personalidade da raça ragdoll —"são atrevidas e ousadas"—, a gata clonada é um filhote mais "gordinho" e peludo que o original.

"O som do miado também não é o mesmo", conta Kelly.

Animais clonados têm o mesmo genótipo [composição genética], mas os fenótipos [características visíveis] podem ser distintos. Atualmente, os motivos para essas diferenças não são totalmente compreendidos, mas apontam para efeitos de reprogramação celular* e epigenética.**
Ângela Saito, pesquisadora do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio)

* Reprogramação celular é um processo em que uma célula já especializada é "resetada" e passa a ter outra função.

** Epigenética são as transformações que um organismo sofre pelos estímulos ambientais, capazes de ativar determinados genes e silenciar outros —a experiência pode alterar o fenótipo, mesmo mantendo a sequência do DNA.

Tudo muito fofo, só que não

Deixando a história de Belle um pouco de lado, vamos entender de onde nascem os clones: de vários animais anônimos usados para criá-los.

Estas fêmeas invisíveis, que nada têm a ver com o desejo humano de duplicar seu pet, vivem em condições desconhecidas.

Há relatos de que passam parte da vida em laboratório, onde são tratadas com hormônios, submetidas a sucessivos procedimentos cirúrgicos invasivos (retirada de óvulos e implantação de embriões) e com muitas gestações abortadas.

"A baixa eficácia observada entre o número de nascimentos vivos pelo número de embriões transferidos é decorrente principalmente de anomalias nas placentas, problemas cardíacos e deficiências imunológica e renal", explica Ângela Saito.

As empresas prometem entregar um animal saudável e o mais parecido possível com o original. Filhotes muito diferentes ou nascidos com má-formação têm destino incerto.

Para Robert Klitzman, especialista em bioética da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, um animal de estimação clonado não passa de um "artigo de luxo".

Estamos sujeitando animais a danos por algo que não é essencial. Você pode amar muito seu pet, mas quer que diversos animais sofram e até morram para tê-lo de volta?
Robert Klitzman, especialista em bioética em entrevista a Tilt

Senta que lá vem história...

O primeiro cachorro clonado do mundo foi Snuppy. O nome é uma fusão de Universidade Nacional de Seul (SNU), onde foi criado, e "puppy" (cachorrinho, em inglês), além de uma homenagem ao beagle das tirinhas de Charlie Brown.

O cão da raça galgo afegão nasceu em 2005 após três anos e mais de mil tentativas. A matemática que deu vida a Snuppy ajuda a entender as críticas por parte de ativistas à clonagem comercial de pets:

O que diz a PETA*

Todo mundo que já perdeu um animal querido entende o desejo de tê-lo de volta. Mas clonar é um show de horror: um desperdício de vidas, tempo e recursos. Cachorros não são tubos de ensaio. Reconhecer que eles não são reproduzíveis é uma maneira de honrar sua memória."

*Organização internacional que defende tratamento ético de animais

"Não clonarei de novo"

Desde que revelou a clonagem de sua gata, Kelly tem sido alvo de críticas e mensagens de ódio nas redes sociais.

Uma delas veio da própria PETA, que enviou um e-mail dizendo que sua atitude "afeta direta e negativamente a vida de outros gatos que precisam de uma família".

A adestradora rebate:

"Tenho cinco cachorros e quatro gatos, a maioria adotados. Já fiz lar temporário para mais de cem animais. Sou voluntária e faço doações a ONGs, inclusive à Peta. Faço minha parte. Não acho que a clonagem afete abrigos. É uma porcentagem muito pequena."

Ela afirma que não pretende recorrer à clonagem para nenhum de seus outros animais, mas apoia que células sejam armazenadas para eventualidades. Recentemente, congelou as de seu cão Ghost.

"Muita gente associa clonagem ao luto, à morte e à perda, mas não acho que sejam a única razão. O principal motivo é o amor. Pessoas clonam por amor."

"Jurassic Park" vs. realidade

O motivo mais nobre da clonagem é, sem dúvidas, o de preservar nossa biodiversidade e salvar espécies ameaçadas de extinção. E isso não é mais roteiro de ficção científica ao estilo "Parque dos Dinossauros", de Steven Spielberg.

A própria ViaGen, em parceria com órgãos de preservação ambiental dos Estados Unidos, já clonou dois animais que correm risco: uma doninha-de-patas-pretas (Mustela nigripes) e um cavalo-de-przewalski (Equus ferus przewalskii).

A Sinogene, empresa concorrente chinesa, copiou um lobo-do-ártico (Canis lupus arctos), que nasceu da barriga de uma cadela da raça beagle.

Falávamos de "Jurassic Park"? Cientistas já vêm tentando trazer de volta animais extintos. O mamute, que desapareceu da Terra há 4.000 anos, é um deles. Material genético preservado em fósseis serviria como matéria-prima para o processo, que também envolve elefantes.

O objetivo é repovoar regiões da Sibéria, o que ajudaria a reequilibrar o meio ambiente e combater mudanças climáticas. O projeto é da startup Colossal, cujo mentor é George Church, especialista em edição genética da Universidade de Harvard. Ele também tem planos de reviver o dodô, ave exótica extinta no século 17.

A empresa recebeu um aporte de US$ 15 milhões de investidores.

FAQ: tira-dúvidas sobre a clonagem de pets

1. Clonar animais no Brasil é legal?

A prática não é proibida, mas ainda não foi regulamentada (teve regras estabelecidas). A clonagem já acontece no setor agropecuário. Há um projeto de lei tramitando na Câmara para regulamentá-la, mas apenas para animais ligados ao ramo. O texto, no entanto, não fala de clonagem de pets.

2. Quero clonar meu animal de estimação, mas moro no Brasil. Como faço?

Por enquanto, esse tipo de clonagem é oferecido comercialmente apenas nos Estados Unidos, China e Coreia do Sul. A ViaGen Pets & Equine, do Texas (EUA), diz aceitar clientes de qualquer parte do mundo. Nesse caso, é preciso enviar adequadamente o material genético —um tecido, em geral da pele, coletado pelo veterinário. A chinesa Sinogene e a sul-coreana Soaam também atendem globalmente.

Por aqui, há empresas do ramo agropecuário, como a In Vitro Brasil Clonagem Animal, sediada em Mogi Mirim (SP), que fornecem armazenamento de células congeladas de gatos e cachorros, a um custo de R$ 3.000. Mas sem clonagem.

3. Quais são os riscos da clonagem de pets?

Além do alto custo e da baixa taxa de sucesso (cerca de 20%), é preciso estar ciente de que o animal clonado pode não reproduzir o comportamento e nem mesmo as exatas características físicas. Você não vai trazer seu bichinho de volta à vida.

4. Quero me informar mais sobre o assunto

Livro: "Os Clones", de Marcia Lachtermacher Triunfol (Coleção Folha Explica)

Livro: "O Gene: Uma história íntima", de Siddhartha Mukherjee (Companhia das Letras)

Livro: "Dog, Inc.: The Uncanny Inside Story of Cloning Man's Best Friend", de John Woestendiek (Avery, em inglês)

Documentário: "Explicando: DNA Projetado" (Netflix)

Desisti de clonar meu pet. Onde posso adotar?

Temos mais de 30 milhões de animais abandonados no país. Sofrendo de fome, sede, maus-tratos. Esperando a vida inteira por uma chance de amor. Enquanto isso, pessoas ficam produzindo cachorros em laboratório só para satisfazer o desejo de ter um igual.

Luisa Mell, apresentadora e militante da causa animal

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