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Blog do Dunker

Comentários, censura, leis: estamos em guerra para ocupar o espaço digital

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Imagem: yanalya/ Freepik

18/09/2020 04h00

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Em novembro de 1620, o navio Mayflower aproximava-se da costa americana quando foi atingido por uma tempestade. Em pânico os peregrinos ingleses que viajavam para as colônias do sul resolveram mudar de rota e aportar ali mesmo, no que viria ser as 13 colônias que originariam os Estados Unidos da América.

A mudança imposta pelo destino logo evoluiu para o medo de que, deixados à sua própria sorte, eles se transformassem em selvagens. Oprimido por tais temores e circunstâncias, logo antes de desembarcar eles formularam um pacto, que viria a ser o embrião da futura constituição norte-americana. Este pacto assegurava duas coisas:

1. Somos uma comunidade política. Isso nos protegerá de nos transformarmos em bárbaros, lutando todos contra todos, pois desde o começo nos autorizamos a criar nossas leis.

2. Temos uma confiança entre nós. Perseguidos por nossas crenças religiosas comuns —o que nos torna, de certa maneira, iguais—, nos propomos a criar um modelo positivo de liberdade.

Quando olhamos para o desenvolvimento da World Wide Web, podemos notar que em sua primeira década de funcionamento vigorava uma espécie de pacto fundacional semelhante ao dos pioneiros do Mayflower. Criada para fins militares, logo foi ocupada por acadêmicos e universitários que viram neste novo espaço uma forma de vida comum para a troca e produção de conhecimento.

Na sua segunda fase, na qual seu uso se populariza potencializado pela banda larga, a partir dos anos 2010, chegando às camadas mais populares, podemos falar, pela primeira vez, em uma plataforma de diálogo global. Mas ao contrário do pacto formador ou de uma constituição, com uma área reservada ao judiciário, muito pouco foi feito em termos de regulação jurídica da internet.

As companhias desenvolvem suas políticas de privacidade e os algoritmos filtram material previamente designado como indevido. Tempos atrás conheci uma pessoa que trabalhava dia e noite examinando cenas de violência, no contexto da guerra no Oriente Médio, que poderiam ou não vir a público.

Fato é que estamos para a internet assim como os pioneiros americanos em termos de legislação e como a equipe do laboratório de madame Curie, quando da descoberta da radioatividade, em termos científicos.

Inebriados pela descoberta da energia em "estado puro" a equipe brincava com substâncias tóxicas, algumas delas brilhantes e coloridas. Vendiam-se cápsulas de "energia radioativa" nas farmácias, até que ficaram claras as consequências atômicas de certos materiais.

É possível que estejamos lidando com um momento heroico e originário no uso e ocupação do território digital.

De fato, estas duas preocupações tornaram-se decisivas para o nosso momento digital: como reduzir a barbarização e a progressão da violência, inclusive aquela de valência política, e como mediar a produção de conteúdo falso, cognitivamente distorcido e cientificamente equivocado?

Mas a grande questão aqui é saber se vamos reproduzir os nossos modos tradicionais de colonização, censura e devastação do espaço, que formamos nos últimos séculos ou algo novo pode ser pensado, tanto em matéria de justiça quanto de liberdade. Para isso será importante observar como a partilha entre público e privado se reconstruirá digitalmente e como os processos de individualização serão incorporados ou mimetizados nesta nova linguagem.

Como em qualquer construção de um espaço político teremos a distribuição entre poder, autoridade e força. Como a lei vertical das instituições e lugares se redistribuirá em termos da horizontalidade das estruturas de comunidade, como a das redes sociais? Como a fala, como apropriação consequente da língua, dará lugar a um novo tipo de implicação e responsabilidade?

De certa forma a chegada da linguagem digital e das redes sociais introduz uma série de peregrinos, legados aos seus próprios barcos, prestes a constituir comunidades de destino e corpos políticos. Mas as condições são exatamente reversas às enfrentadas pelos pais da futura nação americana: baixa confiança uns nos outros, garantida pelo direito de anonimato, estímulo à desconfiança violenta e indivíduos sofrendo com a sua falta de pertencimento a um destino comum.

mulher olha smartphone - katemangostar/ Freepik - katemangostar/ Freepik
Imagem: katemangostar/ Freepik

Infelizmente, não levamos muito em conta o fato de que nesta linguagem somos pioneiros e peregrinos que ainda desfrutam de um tipo de liberdade que certamente as gerações futuras não conhecerão. Ou seja, a verdadeira disputa que enfrentamos hoje no universo digital se dá entre os que pedem por um marco regulatório, que brevemente criminalizará o uso de expressões violentas, punirá a prática da calúnia, difamação ou injúria, e perseguirá a transparência de dados ou o uso comunitário das informações amealhadas pelos dados estruturados em associação com a inteligência artificial e aqueles que acreditam nos poderes da autorregulação, do bom uso do cancelamento, da crítica livre e da liberdade de expressão criativa.

Assistimos a uma verdadeira guerra pela domesticação, censura, uso e ocupação do espaço digital por discursos, léxicos e vocabulários os mais diversos. A quantidade de choques e de efeitos colaterais deste cosmopolitismo digital ainda não pode ser calculada, mas é sentida pelos usuários.

Assim como a arte de ler comentários não é difícil de dominar, mas demanda uma capacidade de interpretar o anonimato, a arte de individualizar-se na linguagem digital demanda a habilidade de virar-se como tela de projeção para o ódio, mas também para o amor mal individualizado.

Essa é a recomendação geral para os que fazem lives, tem canais no Youtube ou se manifestam em ambiente virtual. "Não leia os comentários" e jamais responda a eles — foi a recomendação que ouvi pessoalmente de uma especialista do MIT, logo após a eleição de Trump nos Estados Unidos e às vésperas da eleição de Bolsonaro no Brasil.

O conselho visava sobretudo a lógica dos algoritmos. Se você responde será capturado pelos robôs e sua página será invadida por potências superiores, em número e em capacidade, violência a que você mesmo pode responder. A ideia é que a violência deixada à sua própria sorte, sem nenhuma resposta que resista a ela, se extinguirá por falta de adversários.

Entendo o argumento, mas não consigo concordar com ele quando penso do ponto de vista da psicanálise.

Quando vejo os comentários de minha última coluna sobre "Harry Potter" e "Crepúsculo" alegando que meu texto seria confuso, deplorável, prolixo, desconexo, enrolado, sem embasamento e que não passa de um "festival de sandices". O argumento do texto era de que os livros de J. K. Rowling, publicados entre 1997 e 2007, depois tornados filmes, assim como a série "Twilight" (Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse e Amanhecer) de Stephenie Meyer, haviam funcionado como narrativas geracionais preparando o terreno para perguntar quais seriam o equivalente destas narrativas agora, em tempos de banda larga?

Dizia também que ao abordar temas como o "deixar-se morder", a "cicatriz e a deformidade" e a transformação do "corpo inumano", abriram as portas para um novo tipo de narcisismo e de amadurecimento psíquico. Contudo, os comentários mais benévolos objetaram que seria simplesmente incorreto falar em "amadurecimento" para uma geração que é tão obviamente imatura, infantil e que jamais saiu de um "mundo fantasioso".

A interpretação de texto tornou-se uma espécie de fast food reverso do sentido aleatório. Se o "público" não entendeu a culpa é da mensagem. Se você contrariou alguma suscetibilidade, devia estar atento aos códigos. Se o uso de referências eruditas ou clássicas foi ofensivo, censure-se antes e preventivamente. Se tudo der errado, entregue-se a rituais de autoexpiação.

De fato, há um conhecido teórico da linguagem que descrevia todos estes efeitos sob o nome de "poder discricionário da linguagem", ou seja, que neste campo quem decide o valor de significação é quem recebe e não quem envia a mensagem. Este conhecido teórico chamava-se Josef Stalin. Ele mesmo, o líder comunista que governou a União Soviética de 1941 a 1953. Essas teses foram retomadas mais tarde, criticamente, por Roland Barthes, para afirmar, por exemplo, que a "língua é fascista".

Como psicanalista sempre achei muito interessante ler os comentários. Eles revelam muito mais do que um juízo de gosto sobre o que está dito. Represálias ao meio no qual a mensagem é veiculada, ataque a orientação política do articulista, demandas erráticas de atenção e reconhecimento, raiva porque um tema, autor ou personagem, que supostamente pertence ao usuário, está sendo usurpado por um incauto, revolta contra a instituição universitária que eu represento, enquanto professor da USP. Ou seja, "não leia os comentários" para não estimular sua própria paranoia que confirmará no ódio difuso as vulnerabilidades das quais você já sofre.

Os comentários, dizem os críticos, refletem apenas o prazer de praticar o ódio. Ao responder, qualquer que seja o sentido de nossa resposta, indiretamente reconhecemos a relevância do comentário, o que simplesmente sanciona e alimenta a violência da qual já se é objeto.

Mas será mesmo?

Na clínica aprendemos que quando a reação do paciente é exagerada, explosiva ou altamente protestatória, ou estamos diante de um grande erro ou no caminho certo. Resistências, objeções e críticas, especialmente quando são reativas, sem qualificação de argumentos ou atenção ao objeto que se critica são o critério mesmo de onde devemos nos deter com mais calma. Disso obviamente não decorre que quanto mais enxovalhação, mais verdade, mas o equívoco tem seu potencial de periculosidade.