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Opinião

Brasil no divã: quais cuidados podem recuperar o país de seus sofrimentos

Durante os últimos anos fizemos diagnósticos de Brasil. Especulamos razões, causas e motivos pelos quais gente de bem e gente do mal tornaram-se possuídos por convicções delirantes e conspiratórias. O Brasil pariu um novo tipo de mal-estar fundamentalista.

Tal qual um paciente em crise, durante este tempo manter sinais vitais e sobreviver era suficiente, viver, um luxo.

O futuro ficou curto, sem agenda própria, cheio de sustos metodológicos e golpes experimentais. O passado não passava, repetindo-se em formas deformantes e alegóricas do regime militar.

Se até aqui brincamos de colocar o Brasil no divã, anunciando a gravidade do caso, agora chegou a hora de cuidar dele de verdade.

No processo, a oposição esquerda direita envelheceu, dando lugar a uma oposição mais simples: displicência, vulgaridade e "tosquidão" versus cuidado, civilidade e solidariedade.

Agora é chegada a hora de cuidar dos prejuízos, enterrar os mortos e julgar as impertinências civis e militares, para que elas não voltem a se repetir. Os crimes do bolsonarismo são sobretudo patologias do cuidado: negligência, imperícia e imprevidência.

A primeira medida para voltar a cuidar do Brasil é mudar sua teoria genérica do sofrimento. Abandonar a hipótese de que padecemos de objetos intrusivos, tal como comunistas ou bolsonaristas, dos quais deveríamos nos purificar.

Em vez disso, refazer o pacto simbólico que tem atrás de si uma origem comum e a nossa frente um compromisso futuro. Novos pactos que não repitam a política de alianças instrumentais, pela qual protagonistas têm precedência sobre prioridades e políticas de governo que se impõem a políticas de Estado.

Bons pactos são feitos a base de disciplina e lealdade em cima do que vamos perder e a qual custo previsto, não só do que se trata de ganhar ou manter. A noção de pacto frequentemente remete à negociação de interesses, o que é correto, no entanto o que precisamos é um pacto de cuidado e não mais um pacto de coerção.

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Em um país arruinado quase tudo é prioridade.

Ao contrário da reconstrução europeia depois da Segunda Guerra Mundial, onde sabia-se o que fazer, reconstruindo pontes e igrejas tal qual, no Brasil pós-Bolsonaro nem todos os problemas são conhecidos.

Há um apagão de dados, de professores, de técnicos no serviço público, de pessoal qualificado em saúde.

Milhares de normas, regulamentos e diretivas, feitas para suspender investimentos e encargos, deixaram entulho administrativo por toda parte.

Um terço do orçamento está à deriva discricionária, capilarizando benesses individuais no Brasil profundo: ambulâncias sem motoristas, shows sem política cultural, hospitais sem integração com políticas públicas.

Legislativo, executivo e judiciário praticam abertamente a corrupção dentro da lei.

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Para derrotar os "comunistas" bateu-se palmas para regressão de leis trabalhistas, destruição de universidades, desastres ambientais ignorando que no país onde vive 3% da população mundial, morreram 15% dos doentes de covid.

Enquanto perseguimos laranjas podres o pomar está em ruínas.

A teoria greco-romana sobre a transformação do sofrimento afirma que o destino desfavorável deriva da possessão dos humanos pelos deuses. A concepção judaico-cristã advoga, ao contrário, que o infortúnio decorre da fragilidade das crenças e das provas de fé. Possessão e fé prevaleceram até aqui, mas se queremos parar de matar e deixar morrer, se queremos cuidar, é preciso começar pelo reconhecimento de nossa vulnerabilidade. Como dizia Ana Cristina César: "mulheres e crianças são as primeiras que desistem de afundar navios".

A teoria de que o Brasil sofre com objetos intrusivo e suas pessoas indesejáveis pode ser substituída pela hipótese de que precisamos de outro pacto social.

Um novo pacto, por sua vez, requer saneamento básico e preliminar de dois processos: alienação e perda de unidade simbólica.

Alienação, em sentido filosófico, psicopatológico ou psicanalítico é uma perturbação da capacidade de reconhecimento. O Outro que nos habita é projetado em nossos inimigos. Nós mesmos perdemos a capacidade de estranhamento, dúvida ou incerteza.

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Se a alienação se cura com o trabalho da memória, a perda da unidade demanda reconhecimento do desejo, esteja ele às nossas costas ou à nossa frente. A perda da unidade simbólica se expressa na apropriação de símbolos, significantes e narrativas comuns por grupos particulares resultando uma perda de pertencimento.

A crise dos últimos anos veio com uma imensa incerteza identitária. Tanto os que acham que sempre foram "alguém", quanto os que estavam cansados de ser "ninguém", sentiram-se silenciados, cancelados e invisibilizados.

Uma crise narcísica generalizada requer um ética do cuidado, baseada em lembrança, escuta e reconhecimento. Isso é uma tarefa prática tanto para a elite que se quer responsável quanto para a elite negra, indígena, sem-terra, sem-teto, das mulheres, LGBTQIA+, dos periféricos, dos trabalhadores do agro e das plataformas de aplicativos.

É preciso redefinir o conceito de elite, não mais pela riqueza e privilégio, mas pela responsabilidade e pela potência de cuidado. Aquele que não compreende as implicações de sua própria posição de classe, periférica ou dominante, vai confundir luta de classes com ressentimento de classe. Não entenderá que a crítica moral do capitalismo, com seu enquadre de culpa ou piedade, não trará a mudança social que queremos. Assim também o louvor jurídico do capitalismo, com seu egoísmo e austeridade, não nos fará um povo menos aflito pela desigualdade social.

A Constituição de 1988, conhecida por sua orientação para a cidadania, é hoje um pacto cujo espírito foi violado. Ela era, antes de tudo, uma promessa, uma reparação e um recomeço.

Por isso é compreensível que o bolsonarismo quisesse instituir um novo começo antes dela. Levar esta promessa a sério significa, por exemplo, tomar o Sistema Único de Saúde uma realidade. Dentro dele três princípios regentes podem ser elevados à dignidade política geral: território, rede e cuidado.

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Cuidar in loco, privilegiando recursos da rede formada por comunidades e instituições traz consigo uma teoria do sofrimento de extração afro-brasileira. Neste caso, cuidar é também pertencer, ou seja, sentir-se implicado na transmissão de uma experiência, nem apenas culpado ou envergonhado individualmente, nem mesmo pessoa jurídica, suficientemente capaz de responder por seus atos. O sujeito do cuidado é uma forma de vida coletiva.

Se a política do cuidado envolve escutar conflitos, reconhecer sujeitos e reparar experiências coletivas, a ética do cuidado nos remete ao modo como tratamos o outro.

Tratar vem de trato, acerto, combinado, mas também lida, manejo ou cuidado, como se fala em cuidado de plantas, pessoas, animais e da própria terra. Na psicanálise tratar passa por interpretar sintomas, de forma a recuperar o desejo recalcado que neles se expressa, atravessar a angústia, simbolizando traumas e lutos, e superar inibições inscritas em nossa corporeidade, humor e disposição.

Por isso, cuidar do Brasil requer enfrentar nosso histórico de sintomas segregatórios e condominiais, simbolizar nossas angústias presentistas e elaborar nossa inibição econômica, cronicamente descompromissada de futuro.

Criar um pacto de cuidado democrático para o Brasil requer recuo crítico do pacto neoliberal, necro e biopolítico, hoje em vigor compulsório.

Suas regras são mais ou menos conhecidas: austeridade e empobrecimento global em troca de proteção social, ambiental ou identitária, em escala de exceção. Desde que não prejudique a economia, tudo o mais é bem-vindo, inclusive cultura e educação.

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A gestão neoliberal da angústia naturalizou a administração do sofrimento, inculcou o sentimento de que a salvação não é para todos, mas só para convertidos. Sofrimento "bem administrado" pode gerar mais desempenho, produtividade e valor agregado, de quebra justifica violência, assédio e racismo.

Se a crise é permanente, só podemos nos contentar com a melancolização do macropoder e obsessão com o micropoder.

O sintoma nacional dos condomínios não apenas habitacionais, do encarceramento massivo nas prisões, das zonas de autossegregação pelo consumo e das comunidades afaveladas constitui a versão histórica mais antiga de nossa forma de resolver conflitos erguendo muros e apartando formas de vida.

Contra isso, lembremos que cuidar é o oposto de desrespeitar, humilhar e desautorizar.

Se Lula quer ultrapassar a retórica hobbesiana, sem depender do humanismo cirandeiro, ele precisa mostrar como políticas públicas geram respeito, evitar vender sustos de desenvolvimento que se transformam em humilhação social e reverter o exercício do poder encarcerador em autoridade simbólica minimamente libertária.

Desativar a teoria de que grandes mudanças exigem grandes concentrações de poder, da qual crenças conspiratórias, fake news e ódio digital são efeitos estruturais, requer um governo capaz de reconhecer o sofrimento das pessoas, capaz de cuidar e não apenas se comportar como para além de uma máquina jurídico-administrativa.

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Agora é a hora para autocrítica da esquerda. Crítica capaz de se traduzir em reformas políticas, capazes de reformar completamente o fetiche do partido, recuperar sua ligação com movimentos sociais, criar transparência no uso do financiamento público, aumentando a representação de negros, mulheres e indígenas, incentivando boas práticas digitais. Sem isso, o bolsonarismo jamais será reduzido a um fenômeno residual e a tentação do condomínio miliciano nunca será abandonada.

Chegou a hora de colocar uma a uma, na bancada da universidade e no escrutínio da razão, as tolices que ouvimos sobre vacinas, família, economia, direito e política externa nos últimos anos. Neste ponto é preciso buscar inspiração nas iniciativas de desnazificação, nos julgamentos exemplares e na renovação radical de nosso projeto educacional, incluindo conteúdo curricular sobre política e história, gêneros e diversidade, economia e comissão da verdade. Matérias obrigatórias no próximo Enem.

Um pacto de renovação democrática depende de uma nova distribuição de bens simbólicos, como por exemplo acesso ao trabalho e cultura. Isso inclui redução de jornadas de trabalho e facilitação de mobilidade entre empregos formais.

O trabalho não é apenas fonte de renda, ele tem uma função civilizatória, como a cultura e a educação. Para tanto será preciso reconhecer a má distribuição do direito ao trabalho, no qual poucos trabalham demais (principalmente em serviços precarizados) e muitos não têm sequer emprego mínimo (especialmente os periféricos).

Incluir não é decretar convivência, mas mediar sua realização. Encontramos aqui, mais uma cada vez a função do cuidado. Ele cria lugares simbólicos de pertencimento, lugares como cozinhas coletivas, centros de produção cooperativa, permanências universitárias, escolas capazes de praticar cuidado real de crianças e jovens.

O empreendimento corrosivo de si mesmo, a disciplina moral das religiões de resultado ou a perspectivação do futuro baseado em consumo e endividamento geram engajamento sem cuidado. Comprovadamente deu errado. Será preciso retirar novamente o Brasil do mapa da fome e da miséria, desta vez de modo sustentável e ecologicamente viável.

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Ora, o melhor antídoto para a angústia sempre foi o desejo, e o melhor termômetro do desejo é nossa capacidade de sonhar. Educação, cultura e saúde mental são os três pilares do que venho chamando de oniropolítica, ou seja, a recolocação do sonhar como paradigma do horizonte político.

Uma esquerda que não odeie o dinheiro precisa entender que onde há identidade pelo fazer, não apenas pelo ser, há comunidade de direito. Onde há forma de vida capaz de unir trabalho, desejo e linguagem existem recursos para sua autotransformação.

A cobertura digital em banda larga é, até aqui, uma versão piorada de nossa estratégia histórica de reprodução do analfabetismo, disfuncional ou funcional.

Aqui encontramos uma acumulação de diagnósticos ligados à nossa crônica inibição: a infinita reforma tributária e fiscal, a cartorialização de áreas inteiras da produção, o distanciamento calculado entre universidades e demandas de interesse público, o sistema feudal de concessões de rádio e televisão.

Um pacto contra a inibição econômica precisa superar a equação que reza: tudo o que não é estatal tem estrutura de empresa, e tudo o que é interesse público é prerrogativa exclusiva do Estado.

Dissolver o sintoma dos condomínios, transformar a angústia identitária em oniropolítica e desinibir a economia são três metas pelas quais espero verificar a emergência de um governo que cuida, não só que administra.

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Os últimos tempos deixaram a amarga lição de que a institucionalidade tem reservas que as comunidades não possuem.

O Brasil precisa deixar de ser hipertrófico nas leis que manipulam formas, garantias e complexidades feitas para vender facilidades e, ao mesmo tempo, incapaz de escutar massas que vivem na informalidade em termos de educação, saúde, habitação e saneamento.

Enquanto a abstração da lei significar uso privado dos bens públicos, por parte dos ricos, e uso dos meios de violência e opressão contra os pobres, enquanto a desigualdade estiver acima de todos, estão dadas as razões estruturais para adiar um novo pacto social pelo cuidado com a democracia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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