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Opinião

Bancas de heteroidentificação: quando leis para incluir acabam ferindo

Tive que esperar minha raiva e indignação baixar, antes de escrever esta coluna. Ela é um retrato crítico de nosso avaliacionismo, impulsionado por certas expectativas geradas pela tecnologia e pela linguagem digital. Desde os anos 1980, com a chegada do neoliberalismo, como plataforma de produção e consumo, e também como forma de vida, nos acostumamos a pensar que processos sem avaliação, forte, rigorosa e persistente nos trazem dificuldades de comparação e consequentemente vagueza na tomada de decisão. De fato, a ausência de dados, mapas e censos é letal para a formação de políticas públicas, assim como a ausente leitura dos próprios recursos aumenta os riscos para qualquer empresa.

Com isso não nos apercebemos que também em nossos processos de inclusão escolar, cotas e demais ações afirmativas, que progrediram neste período, entranhavam-se implicitamente em lógicas de reconhecimento profundamente atravessadas por esta generalização. Avaliação por pares na academia. Escalas de aprovação e desaprovação na política. Metas de avaliação pré-fixadas na economia. Índices de aceitação de produtos e pessoas, como o primeiro episódio de Black Mirror tematizou tão bem.

Mas então tem este rapaz que me apareceu com seus 18 anos no curso de Psicologia da USP, há uns 15 anos. Depois de alguns cursos teóricos e clínicos, ele se apresentou, meio tímido, para fazer uma iniciação científica. É neste conhecido primeiro passo para se tornar pesquisador que a gente percebe um pouco do potencial, e a coisa naturalmente funciona como um filtro e uma pré-avaliação para uma futura candidatura ao mestrado. Ele tinha lá suas ideias sobre Foucault e a circulação do poder no interior da clínica psicanalítica. Tudo seguiu bem até que outro aluno fez um comentário meio estranho, dizendo meio assim: 'achei bem legal você aceitar ele no seu grupo de pesquisa'. Eu perguntei por que, afinal o cara era visivelmente um craque.

Aqueles que me acompanham sabem que eu costumo tratar a pesquisa como um imenso jogo de futebol. É o meu jeito de amenizar subjetivamente a fé cega no avaliacionismo. Estava claro que meu aluno era um craque. Corria o campo todo, voltava para marcar, tinha espírito de grupo e muita sensibilidade nas horas difíceis. Mas foi então que percebi uma coisa a mais, quando meu colega comentou, meio surpreso: "é tudo verdade! Mas você não reparou que ele é negro?". Naquele tempo, a USP ainda discutia se teríamos e como seriam as cotas. A nova discussão sobre racismo estrutural estava emergindo. Mas, de fato, sofri, ainda que de forma indireta, com o efeito de embranquecimento daqueles que se destacam, como descreve a psicanalista Virginia Bicudo.

Meu pequeno craque evoluiu como se esperava. Iniciação científica exemplar, mestrado de primeira qualidade, doutorado com bolsa sanduíche no exterior com tema inédito e original com grande repercussão política. Durante esse tempo ele se destacou "jogando" também pelo Laboratório de Filosofia, Teoria Social e Psicanálise da USP, mas também se tornando uma liderança para esta jovem geração de pesquisadores que levam em conta os estudos decoloniais, as questões de raça, gênero, orientação sexual como parte da pesquisa e das decisões de métodos. Durante este tempo todo, havia momentos em que encontrava com ele no café da Psico e ele vinha meio exausto. Eu brincava que aquelas baladas iam acabar com ele. Ele respondia, meio brincando na primeira vez, mas depois meio sério: "Chris, eu tenho que pagar as contas da casa, moro longe, e tenho que tocar na noite para me sustentar porque a bolsa não tá dando".

Foi ali que percebi que, ao contrário de meus outros alunos, que tocavam na noite para fazer uns trocados a mais ou para se divertirem flertando com a carreira de músico, ele tinha que fazer dinheiro como músico.

Veio o casamento e a filhinha querida. Cheguei a conhecer a mãe de meu artilheiro, negra como ele. Durante este tempo, ele havia percebido a importância de sua própria trajetória e o sentido ainda muito claro de sua excepcionalidade. Passou a falar sobre isso nos congressos de psicanálise, debateu em favor da retomada da importância da negritude e do processo de racionalização na ciência, mas também nos processos clínicos de indicação de pacientes, supervisão e formação de psicanalistas.

Chegou então o dia em que se abriram dois concursos para professor na USP, em meio ao caos das aposentadorias, das greves por mais docentes, dos cursos paralisados e dos clamores por mais professores negros. Ele se tornou imediatamente o candidato da torcida para os dois concursos nos quais se inscreveu. Fogos de artifícios, churrascos comemorativos vieram com a sua aprovação em indiscutível primeiro lugar. Corremos todos para o abraço e para a zueira de vestiário destes momentos antológicos de título.

Após duas semanas, ele partiu para a banca de heteroidentificação. Ao se inscrever, ele responde à pergunta sobe raça: pardo. Após a banca, ele cai da cadeira quando os três membros, dois professores e uma aluna pretos, concluem: "candidato não apesenta fenótipo negro". Certo de que se tratava de um engano, ele recorre do processo e recebe a mesma sumária resposta, agora traduzindo, para deixar claro a violência da mensagem: "você não é negro, logo você é branco e ademais está tentando fraudar um concurso público".

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Nunca vi tamanho desmoronamento. No momento em que precisamos de mais professores negros, sejam eles pardos ou pretos, uma recusa sumária, ainda que seguindo o protocolo do edital do concurso, que previa heteroidentificação por análise de fenótipo (exclusivamente).

Meses antes, como chefe da pós-graduação, eu estava conduzindo o novo regulamento que propunha cotas para alunos de mestrado e doutorado. Foi quando me dei conta da dificuldade de tarefa da heteroidentificação. Afinal, sempre aprendi que o racismo existe, mas a raça não. Contudo, quem dirá de onde vem o saber "científico" para dizer que estes e não outros sabem dizer quem é branco e quem é preto, colocando o pardo na difícil posição de "não branco", mas, conforme as circunstâncias, "não negro" também.

Aqui começa o sussurro do avaliacionismo. Se pardos e pretos compõem a categoria de negros para o IBGE, para estabelecer o percentil de cotistas por estado aparece o critério subjacente do "mais negro que outros negros". Toda vez que levantávamos este assunto, vinham respostas vagas como: "o colorismo é realmente um problema no Brasil". Quando indagado como se comporiam tais bancas: "todo mundo sabe". Existem pessoas de notório saber como Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro que poderiam compor a avaliação, mas elas poderiam participar de todas as bancas de heteroidentificação? O que dizer dos critérios regionais, de classe e gênero pelos quais a percepção de negritude varia severamente? E nos casos de litígio e dúvida, como faremos para confirmar a decisão, em caso de recurso? Como estas bancas se incluiriam como parte da institucionalidade, seja da USP, seja do ordenamento jurídico ou do Estado?

O concurso foi anulado, a autodeclaração de meu aluno invalidada, sua identidade desmentida pelos poderes uspianos, decididos por sabe-se lá quem. O caso seguiu para a Congregação do Instituto de Psicologia. Foi aí que o murmúrio virou a gravidade da voz institucional. Surgiram interpretações para o resultado da banca de heteroidentificação: isso "não queria dizer que ele é branco então", só que ele não é negro. Afinal, com este fenótipo "ele não teve que fugir da polícia". Ele não teria "dificuldade para arrumar emprego" ou então sofrer "tanto" prejuízo social ou estigma, quanto outros.

Não sei como resolver ou encaminhar tal absurdo. Quando não se percebe que um dos componentes da perpetuação do racismo é a institucionalização das antigas regras e critérios de avaliação "categorial" (tudo tem que caber em caixas e nos administradores de caixas), mesmo as leis feitas para incluir são usadas para ferir. Teria ele sido prejudicado no concurso subsequente? Teria ele sido ofendido em sua identidade de negro, duramente construída? De que maneira ele poderia ter se protegido contra tal humilhação? Quem vai pagar por um sofrimento imposto desta maneira? Mais um caso silencioso e silenciado de "corrupção dentro da lei"?

A história possui um último requinte sádico: uma vez que a inscrição para o segundo concurso já havia sido feita, ele não podia voltar atrás, agora que "descobriu que não era mais institucionalmente negro", e se autodeclarar "branco", para ter alguma chance de passar. quando chocado com seus paradoxos, O avaliacionismo entra em crise e revela sua verdadeira natureza obscena.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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