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Blog do Dunker

Como os comentários na internet viraram expressão de violência e opressão

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Imagem: kues1/ Freepik

04/09/2020 04h00

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Imagine que você está andando por uma rua conhecida, prestes a chegar em casa depois de um dia de trabalho, como nos idos tempos pré-quarentena, quando nosso cotidiano era composto por intervalos e deslocamentos que pontuavam modos de vida e de presença. As horas passadas em trens, ônibus ou automóveis não eram apenas cansativas, mas também momentos de respiro subjetivo, nos quais era possível sonhar, meditar sore outros mundos ou simplesmente se obsedar com palavras malpostas e diálogos imaginários infinitos.

Suponha agora que, em um destes momentos, escutamos uma voz dizendo: "ei, você aí!" Sentimos que este pronome "você" quer dizer "eu", o que é um tanto inusitado porque a voz é desconhecida e porque nos sentimos acusados, com o frio na barriga, como se tivéssemos feito algo errado. Somos convocados a dar uma explicação, justificativa ou respostas, mas sem saber muito bem de qual lugar responder, porque não interpretamos muito bem de qual lugar esta voz nos chama.

O fato é que nós nos identificamos como o sujeito deste chamado. Mas é fato também que alguns traduzirão este instante de medo com experiências traumáticas e recorrentes de violência real enquanto outros serão angustiados por lembranças de assédio, outros ainda serão invadidos por fantasias indutoras de intenso sofrimento.

Esta convocação funciona como um gatilho que pode vir em qualquer palavra, por exemplo, naquela forma característica como escutamos nosso nome próprio (pronunciado com aquele "sabor", digamos, crítico-materno) ou até mesmo no silêncio. Mas o fato último é que ela incide de maneira diferencial quando se é negro ou branco, rico ou pobre, mulher ou homem, nativo ou estrangeiro, jovem ou idoso. Neste caso é como se fossemos forçados a escutar (ou a silenciar) este traço de pertinência a um conjunto, coercitiva e compulsoriamente.

O filósofo Louis Althusser (1918-1990) chamou este processo de "interpelação" mostrando como ele funciona produzindo relações de poder e autoridade. A interpelação apoia-se em um saber tácito, também chamado de ideologia, que nos obriga a saber quem somos, como devemos posicionar os outros e a nos reconhecer compulsoriamente em certos significantes.

É por meio da interpelação que esperamos que certo tipo de pessoa fale, decida e comande e que outro tipo de pessoa escute, aprenda e obedeça. Códigos de vestimenta e alimentação, estilos de consumo e uso da linguagem, assim como signos de economia de prazer e satisfação são atravessados por interpelações ideológicas.

Elas funcionam sempre de forma mais ou menos inconsciente, determinando saberes que não são explicitados e que naturalizam relações de poder e opressão. Com a chegada da linguagem digital surgem novas gramáticas de interpelação baseadas no medo de ficar de fora ("fear of missing out"), no empuxo ao ódio, no narcisismo digital ou na convocação identificatória induzida por algoritmos.

Um bom exemplo nacional de interpelação é a expressão "você sabe com quem está falando?", usada para intimidar o interlocutor. A expressão apela para o fato de que nunca sabemos exatamente com quem estamos falando. Inversamente, sempre podemos estar fazendo algo errado. Olhando bem de perto sempre encontraremos uma nódoa de culpa.

A interpelação se aproveita da indeterminação estrutural do lugar de escuta para criar efeitos de dominação. Isso significa que quando ficamos em dúvida, quando experimentamos incompreensão ou ambiguidade diante da mensagem, nossa tendência é seguir a ideologia. O fato de não sabermos quais vozes e lugares estão sendo interpelados em nós faz com que sejamos obrigados a escolher onde receber e como tramitar a mensagem, o que é particularmente repressivo quando o tom é crítico, recriminatório ou intimidativo.

Usualmente fazemos isso mobilizando nossa própria fantasia inconsciente, ou seja, respondendo do lugar que em nós é fonte de vulnerabilidade, inferioridade e fragilidade. Foi assim que o grande psiquiatra e pensador negro Frantz Fanon (1925-1961) foi interpelado por uma criança, quando chegava em Paris, vindo de sua terra natal, a ilha de Martinica: "Mamãe, olhe o preto, estou com medo!" [1]. A partir dessa interpelação ele inicia um percurso crítico e engajado sobre como a segregação racial opera nos sujeitos e na sociedade.

Educações e subculturas violentas se apoiam frequentemente em interpelações como: "eu posso não saber porque estou batendo, mas ele sabe porque está apanhando". A interpelação age silenciando, mas também incitando ou obrigando a falar, por isso seu traço característico é a violência no uso das palavras e no rastro de discurso que elas deixam.

Uma pergunta é interpelativa não apenas quando seu enunciado ofende o interlocutor, mas também quando sua enunciação usa a determinação (que força a identificação com um traço) ou a indeterminação (que se serve do já sabido ideológico) para criar constrangimento ou impotência. Em ambiente digital o efeito de interpelação pode ser produzido pelos comentários que criam uma atmosfera de enunciação, na qual enunciados aceleram sua força e contundência.

Determinadas palavras ou significantes tornam-se problemáticas justamente porque situam-se na confluência histórica como marcadores de interpelação. A controvérsia em torno do "politicamente correto" não é uma disputa sobre quem detém a norma, mas uma luta contra os efeitos interpelativos da linguagem, contra a naturalização de contradições e conflitos, paralisando o sentido de seu movimento transformativo.

Uma coisa importante na interpelação é que ela sempre acompanha e reforça relações de poder já em curso, ou seja, tanto ao determinar "tipos de pessoas" quando ao indeterminar a enunciação das posições de raça, classe, gênero e etnia.

A interpelação usualmente reforça a opressão e a segregação que já recai sobre os grupos vulneráveis, e deve ser criteriosamente separada das estratégias de resistência que interpõem a ela e que tentam em última instância interpretá-la. Por isso, contra a interpelação, frequentemente mobilizamos invocações, ou seja, traços de pertinência onde nós mesmos nos reconhecemos.

Emojis no rosto - rawpixel.com/ Freepik - rawpixel.com/ Freepik
Imagem: rawpixel.com/ Freepik

Ora, a linguagem digital acentuou de modo dramático os efeitos corrosivos da interpelação embaralhando a fronteira entre esta e a crítica. Passamos da fala para a escrita, como se não houvesse um hiato entre elas quando o assunto é enunciação. Passamos também da fala-escrita em modo público para sua expressão privada, consumimos manchetes e conclusões, deixando de lado processos e contextos.

Chegamos assim ao que usualmente se descreve como ambiente tóxico da internet, onde violência, denúncia e acusação interpelativa tornam-se regra. Esse mesmo espaço digital deu suporte para que vozes historicamente oprimidas e silenciadas pudessem ocupar certos espaços públicos (ou ambiguamente públicos), encontrando meios para uma experiência inédita de reconhecimento. Desta maneira a violência da interpelação ideológica encontra uma superfície de contato com a violência crítica expressa em demandas de reconhecimento.

O exercício da inversão estratégica de lugares, por exemplo, entre as "pessoas tipo" que falam-mandam e as "pessoas tipo" que escutam-obedecem. Isso não é o mesmo que dizer "se você pode ser feminista eu posso ser machista", inversão ideológica que supõe que já estamos em um estado de igualdade e equidade, que permitiria a livre alternância e confronto de posições, em um meio ambiente supostamente neutro de privilégios.

Teríamos que distinguir a violência tóxica e interpelativa da violência que nos faz ver as razões da violência, justamente para nos estranharmos com ela. Isso é sensivelmente difícil na situação digital que suprime a corporeidade em presença substituindo-a por uma corporeidade discursiva. O corpo no discurso digital facilmente forma unidades agressivas contra algo ou alguém.

Deivison Nkosi detalhou bem este processo quando se trata da oposição de raça:

O que Fanon quis dizer com "a violência desintoxica" ao lado da afirmação "o que queremos é libertar tanto o branco de sua brancura como o negro de sua negrura" é que a luta contra o identitarismo branco, se for levada até as últimas consequências, será acompanhada de incômodos incontornáveis que, pelo menos, no calor da batalha, terão o efeito colateral de devolver temporariamente para o colonizador, o mal-estar que a sua simples presença, enquanto colonizador, impôs durante séculos. [2]

No ambiente digital, isso pode tornar-se uma batalha que reproduz a violência interpelativa de parte a parte. Perguntas pertinentes se expressam em enunciações ofensivas. Pedidos de esclarecimento tornam-se rituais de expiação. Questionamentos pertinentes tornam-se ofensivos e degradantes quando apoiam-se em interpelações de identidade. Paisagem de xingamentos, com nebulosas narrativas de autoconfirmação, pode tornar o exercício de "troca de lugar entre colonizador e colonizado" apenas ocasião para mais violência entre os que compartilham interesses e projetos convergentes. Quando se invocam as mais simples retomadas e modalizações isso apenas confirma a retórica da desculpa e da justificativa.

Há propriedades formais da linguagem digital que concorrem para isso. Primeiro ela propicia um alto nível de anonimato flutuante por meio do qual uma voz pode se apresentar alternadamente como um pseudônimo, robô e perfil falso ou como uma voz que predica um corpo identificável, dotado de marcas e história particular.

O segundo problema é que mensagens escritas podem traduzir muito mal a relação entre "o que se diz" (enunciado) e a "forma de dizer" (enunciação). Usamos caixa alta para gritar, emojis para caracterizar emoções, figurinhas para indexar a enunciação, memes para criar atmosferas, sem falar em significantes de "alta definição" para marcar posições políticas, estéticas e morais.

A individualização da mensagem e a redução do conflito ocorrem na medida direta da polarização sem síntese (cancelamentos, unfollows, exclusões) e na razão inversa ao número de participantes. A intensificação de afetos, hostis ou admirativos, a tipificação dos envolvidos, a convicção baseada em ódio e culpa, acentua a diferença de potência entre vida real e virtual.

A inconsequência com os efeitos sobre o outro, trazida pelo anonimato, a covardia, trazida pelo funcionamento em massa digital, soma-se o capital de identidades gerado pela acumulação de traços de pertinência. Isso força a hegemonia de discurso a se replicar indefinidamente, com reduções periódicas das camadas de diversidade e heterogeneidade.

Talvez estejamos apenas no meio de um processo de transformação, diante de um mundo demasiadamente desigual, para o qual temos a impressão de acordar tarde demais e outro mundo para o qual nos sentimos ainda despreparados.

REFERÊNCIAS

[1] Fanon, F. (1952) Pele Negra, Máscara Branca. Salvador: Edufba, 2008, pág. 105.

[2] Deivison Nkosi (2020) As vezes, a crítica à crítica da crítica é apenas, ausência de autocrítica: Sobre a realeza negra, a psicanálise e a crítica ao duplo narcisismo