O misterioso filme que Hitchcock 'não conseguiu dirigir' chega ao Brasil
Alfred Hitchcock, mestre do suspense e diretor de alguns dos grandes filmes da história do cinema. Porém, ele não conseguiu realizar todos os projetos que gostaria. Um deles, a adaptação da peça "Mary Rose", nunca saiu do papel - e do coração. Quase 45 anos depois da morte do cineasta, a produção finalmente ganhou vida. Agora chamado de "The Island Between Tides", o longa-metragem é destaque na 20ª edição do Festival Fantaspoa, que ocorre em Porto Alegre até o dia 28 de abril.
"O filme é um drama familiar em sua essência, e esperamos que as pessoas possam se identificar com os desafios que nossos personagens enfrentam. A intenção do longa é provocar uma conexão pessoal do público com temas como a passagem do tempo, o luto e a força do vínculo familiar", contextualiza Austin Andrews, o homem que "realizou" o sonho de um dos maiores diretores do cinema mundial, a Splash. Ele assina como produtor, co-roteirista e co-diretor de "Island".
Hitchcock tinha uma visão bem particular, além de um processo próprio. Normalmente, ele encontrava as inspirações para seus filmes em peças teatrais. Quando ele assistiu à montagem de "Mary Rose" pela primeira vez, ainda jovem, sentiu que precisava levar aquela história para a tela grande.
A peça original é sobre uma jovem - a personagem-título - que some duas vezes em uma ilha. A primeira acontece quando é criança, retornando semanas depois. Já a segunda ocorre quando é adulta, com um filho pequeno, e o retorno vem após décadas. Para Mary Rose é como se os anos não tivessem passado, e ela é obrigada a lidar com os ressentimentos do mundo que teve que continuar vivendo sem a sua presença - se tornando uma espécie de fantasma. Tudo isso é contado de forma não linear, indo e vindo pelo tempo, e usando como ponto de vista inicial o de Harry, o filho adulto de Mary Rose.
A peça foi escrita por J. M. Barrie, autor de "Peter Pan", e estreou em 1920. Como o trabalho mais famoso do mesmo autor, o texto brinca com o fato de sua protagonista não envelhecer e com a existência de um lugar mágico, mas com origens e repercussões mais sombrias. Aqui, pesa bastante o pessimismo do mundo durante a Primeira Guerra Mundial.
Alfred Hitchcock passou por praticamente todos os grandes estúdios de sua época, mas não conseguiu realizar o seu sonho em nenhum deles. Na década de 1960, chegou a encomendar um roteiro para Jay Presson Allen (de "Marnie, Confissões de uma Ladra"), que está disponível pela internet, e escalou a atriz Tippi Hedren (protagonista de "Marnie") para o papel principal. Nunca conseguiu a luz verde para seguir com o sonho. Lendo o rascunho, faz sentido: trata-se de uma história de terror diferente daquelas que Hollywood havia se acostumado. Seja como for, "Mary Rose" acabou influenciando outra obra-prima do mestre, "Um Corpo Que Cai", de 1958 - a diferença é que o sobrenatural foi substituído por uma ganância muito terrena. "Trama Macabra", de 1976, também tem suas referências à peça de J. M. Barrie.
Do inferno à tela grande
Depois da morte de Hitchcock, a adaptação continuou no "development hell", como é chamado esse "limbo" onde ficam as produções que nunca saem do papel. Eventualmente, o projeto caiu nas mãos de Melanie Griffith, filha de Tippi Hedren, mas nada mudou esse destino. Até agora. É aqui que entra Austin Andrews e seu parceiro, Andrew Holmes.
"Isso [o nosso envolvimento] remonta há cerca de cinco anos, o que, no cinema independente, é um período bastante rápido, desde a ideia até o filme finalizado", conta Andrews em entrevista exclusiva.
"Andy e eu tínhamos outros dois roteiros em andamento, com outros produtores, que estavam ambos no processo de desmoronar, e estávamos procurando algo menor que pudéssemos desenvolver e produzir por nós mesmos. Ao longo de um almoço fatídico em nosso restaurante de frango frito favorito, contei a ele sobre uma peça que havia encontrado quando adolescente e que sempre tinha me marcado, 'Mary Rose', e como nunca tinha sido adaptada antes. Ele leu e se tornou o guardião das ideias mais interessantes e dos momentos dos personagens, mas eu nunca reli, não até depois de terminarmos. Eu estava mais interessado em adaptar a impressão que a peça causa do que o próprio texto."
Austin Andrews
Holmes, que assina a produção, o roteiro e a direção ao lado do Andrews, explica que a intenção foi fazer daquela história algo relevante em nossa época, mais de 100 anos depois que o conto original foi escrito. Porém, como fica essa sombra da famosa tentativa de adaptação?
"Nós definitivamente estávamos cientes das aspirações de Hitch, e isso nos ajudou a alimentar a chama", relata. "No mercado cinematográfico de hoje, você precisa ter uma história por trás da sua história para chamar a atenção do público, e sabíamos que isso seria um ponto de discussão interessante com os executivos quando estávamos buscando financiamento para o filme."
No entanto, as influências param por aí. "Deliberadamente evitamos ler o roteiro de Jay Presson Allen [...]. Não queríamos ser diretamente influenciados pelo roteiro deles", confessa Andrews. "Era importante para nós não fazer um filme de Hitchcock. Em vez disso, decidimos prestar homenagem ao lendário diretor com algumas tomadas cuidadosamente planejadas".
O resultado é um longa-metragem que vai dos anos 1980 aos dias atuais, contando não a história de Mary Rose, mas sim a de Lily (Paloma Kwiatkowski, de "Bates Motel") - uma jovem que desapareceu em uma ilha quando era criança e, posteriormente, passou por um segundo desaparecimento já na fase adulta. Muito tempo depois ela retorna para encontrar uma família cheia de pesar, um pai (Donal Logue, de "Gotham") em eterno luto e um filho (David Mazouz, também de "Gotham") cheio de dor e assombrado por "espíritos". Ela precisa descobrir o mistério da ilha, que envolve uma interessante forma de retratar o funcionamento do tempo na ficção. Na prática, é como se "The Island Between Tides" funcionasse como uma continuação de "Mary Rose".
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Quero receber"J.M. Barrie criou um mecanismo de enredo e personagens maravilhosos, mas não vimos o tipo de narrativa que queríamos contar. Após muitas semanas discutindo ideias, pensamos em uma história paralela que utilizasse o dispositivo de Barrie, bem como o nome da peça. A partir daí, nunca mais olhamos para trás - incluímos dezenas de referências à peça, mas encontramos esse caminho como o melhor para nós e nossa capacidade de contar a história", confessa Andrew Holmes.
Agora, mais de 100 anos depois de Alfred Hitchcock ter assistido a "Mary Rose" pela primeira vez, este enredo ganha um público maior, que não pode ver a montagem do texto original, nem teve a chance de ver a interpretação do mestre do suspense.
"Tem sido maravilhoso ver o filme ser exibido para o público em festivais de cinema até agora - e não faltam interpretações fascinantes", revela Holmes.
A estreia de "The Island Between Tides" em território brasileiro, com a presença de Andrew Holmes e Austin Andrews, aconteceu às 18h15 do sábado (13) passado no Cinema Capitólio, em Porto Alegre, durante o Fantaspoa. O longa-metragem será exibido mais uma vez na programação do festival na terça (16), às 13h. Consulte o site oficial do evento para mais informações.
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