Na Sua Tela

Na Sua Tela

Reportagem

Artistas reclamam da divisão de receitas do Spotify; streaming se defende

Já virou tradição. Ao final de cada ano, as redes sociais são tomadas pela retrospectiva do Spotify, na qual as pessoas compartilham suas experiências musicais na plataforma ao longo dos últimos 12 meses. Enquanto isso, os músicos independentes têm adquirido um novo costume durante esse período: o de reclamar da divisão de receitas entre eles e a empresa sueca.

Esta questão é profunda e divide artistas e streamings, além de envolver décadas de vícios do mercado musical que apenas foram potencializados na era da internet.

Entenda o que está acontecendo

No final de novembro, viralizou nas redes sociais um gráfico que revela que os músicos recebem, no máximo, US$ 0,003 (cerca de R$ 0,015) por play no Spotify. A postagem original foi feita pela Músicos Unidos e Trabalhadores Aliados (UMAW, da sigla em inglês), entidade internacional fundada em 2020 que tem como objetivo "uma indústria musical mais equitativa e justa".

Além disso, a mensagem indica que cerca de dois terços das faixas na plataforma deixarão de gerar receita em 2024, devido a uma determinação da empresa sueca. O tópico se refere a uma nova política do Spotify, anunciada em novembro, pela qual a companhia deixará de pagar royalties para canções com menos de mil plays (ou streams, no jargão técnico) por ano.

"Justiça no Spotify": é o que pede uma petição do UMAW assinada até o momento por mais de 28 mil artistas.

O Spotify amargou um prejuízo de US$ 430 milhões (R$ 2 bilhões) em 2022. Esse foi um dos motivos que levou a corporação a demitir cerca de 2.400 funcionários em 2023. No mundo todo, a plataforma alcançou a marca de 574 milhões de usuários ativos em setembro, um crescimento de 23 milhões em relação ao trimestre anterior.

Artistas se posicionam

A coluna conversou com alguns músicos independentes para se aprofundar na questão. Preocupados com possíveis retaliações, os artistas ouvidos preferiram manter o anonimato.

Eles explicam que, além de pagamentos baixos feitos pelos streamings, profissionais sob contrato com uma gravadora também enfrentam a necessidade de compartilhar 30% da receita com essas empresas — que, nesta era pós-CD, estariam a cargo do desenvolvimento musical e comercial do intérprete, além da distribuição. Na prática, nem sempre é isso o que ocorre entre os pequenos.

Continua após a publicidade

Mesmo os 100% independentes, que não possuem gravadoras, são obrigados a dividir o que recebem com distribuidoras e outros atravessadores para estarem no Spotify.

No caso da barreira dos mil streams, a política irá desencorajar o lançamento de novas canções entre os intérpretes de nicho. Afinal, eles alegam que é necessário pagar pelos serviços dos instrumentistas, produção, estúdio e mixagem de forma antecipada. Se o dinheiro inicial — mesmo que pouco — não entra ou demora mais para chegar, a conta não fecha.

Spotify se defende

O Spotify preferiu não se pronunciar por meio de um porta-voz. No entanto, a companhia forneceu dados (a maior parte deles públicos) que explicam a divisão do dinheiro, além de detalhar as mudanças que ocorrerão em 2024.

De acordo com esses números, US$ 40 bilhões (R$ 192 bilhões) já foram pagos aos detentores das músicas, por meio de royalties. Segundo o Spotify, o montante representa 70% da receita da empresa — que é advinda, basicamente, de assinantes pagantes e da publicidade consumida pelos usuários no plano gratuito. Entre aqueles que recebem esse dinheiro estão gravadoras, produtores, distribuidores independentes e, claro, os músicos e compositores.

Apenas em 2022, de acordo com o balanço da companhia, foram pagos US$ 9,27 bilhões (R$ 44,5 bilhões) em royalties, o que representa quase 80% dos US$ 11,7 bilhões (R$ 56,2 bilhões) que a corporação embolsou no período.

Continua após a publicidade

Especificamente sobre o nosso país, o Spotify informa que as receitas geradas pelos brasileiros na plataforma cresceram 27% entre 2021 e 2022, enquanto dados do IFPI (International Federation of the Phonographic Industry) revelam que toda a indústria musical nacional teve no mesmo período um crescimento menor, de 15%. Além disso, um terço de todos os artistas daqui que geraram mais de R$ 50 mil ou R$ 100 mil são independentes e distribuem sua própria música no Spotify.

Spotify Wrapped: retrospectiva da plataforma foi o estopim para a polêmica em 2023
Spotify Wrapped: retrospectiva da plataforma foi o estopim para a polêmica em 2023 Imagem: Spotify/reprodução

Sobre a nova política para 2024, a empresa explica que a mudança ocorre para resolver o problema dos "pagamentos perdidos no sistema". No total, informa o Spotify, o montante "ignorado" chega a US$ 40 milhões (R$ 193 milhões) anualmente.

Essa receita perdida não irá para o bolso da plataforma, que afirma que irá redistribuir a quantia para as canções que ultrapassarem a barreira dos mil plays. "De todos os streamings, 99,5% são de músicas com pelo menos mil streamings anuais, e cada uma dessas faixas vai ganhar mais com essa política", diz.

Falta de transparência e algoritmo são questões

Ainda que o Spotify seja o streaming de áudio que mais disponibiliza dados de forma pública, é praticamente consenso na indústria do entretenimento de que falta transparência no setor musical. Não há aferição exata de audiência, nem auditorias externas.

Continua após a publicidade

Outra "caixa opaca" envolve o algoritmo. Apesar de algumas explicações em seu site, o Spotify não se aprofunda na forma como é feita a seleção musical para cada usuário, nem como são criadas as playlists automáticas. Há, também, o peso das escolhas do time editorial, o que não é esclarecido em detalhes.

Detratores alegam que esse modelo pode remunerar melhor artistas específicos, mais famosos, em relação aos independentes. É que cerca de 60% dos ouvintes do Spotify estão na categoria grátis e, por isso, possuem limitada capacidade de pular faixas ou de ouvirem álbuns na íntegra. Na prática, é a plataforma que dita boa parte do que a maioria escuta.

Para piorar, há uma nova barreira. Festivais, produtoras e gravadoras agora estão de olho no número de seguidores dos intérpretes nas redes sociais, no total de ouvintes mensais nas próprias plataformas e nos áudios que estão em alta no TikTok. A conquista da fama musical, hoje, passa também pela construção de influência na internet.

O desafio para o artista ser reconhecido por sua música continua tão grande quanto no passado, mudaram apenas os nomes dos obstáculos - e quem realmente lucra com o trabalho dos pequenos.

Siga o colunista no Twitter, Instagram, TikTok e LinkedIn, ou faça parte do grupo do WhatsApp.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes