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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

The Last of Us prova que na guerra do streaming os games viraram o jogo

Colunista do UOL

30/01/2023 04h00

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Resumo da notícia

  • No início da guerra do streaming, a Sony optou por ser uma vendedora de conteúdo e não lançar sua própria plataforma
  • Por muitos anos a decisão parecia um erro, à medida que os concorrentes cresciam e eram incentivados pelos investidores
  • Diante da crise no streaming, a Sony agora parece ter razão; ela ganha bilhões com o setor enquanto as concorrentes perdem
  • O crescente sucesso de The Last of Us, franquia de um game da Sony, é a mais recente vitória da estratégia
  • Os games estão se tornando cada vez mais populares como fonte para produções no streaming e Hollywood

Nos últimos cinco anos, o futuro das gigantes de mídia parecia selado. Quem largou na frente na guerra do streaming, lançou sua própria plataforma e cresceu rapidamente o número de assinantes, venceu.

A disparada do número de assinantes e os recordes dos preços das ações da Netflix apontavam para isso. Até Google, Amazon e Apple, que passaram a marca do 1 trilhão de dólares valor de mercado individualmente, e despejavam bilhões em produção de conteúdo, pareciam confirmar a tese.

A Sony era uma aberração. A gigante japonesa, dona de estúdio em Hollywood, série de TV de sucesso e games consagrados, não tinha uma plataforma própria de streaming. Era o corredor sem qualquer chance na corrida do streaming.

Mas após meses de uma aguda crise no streaming e nas empresas de tecnologia, o mercado começa a descobrir que talvez a Sony seja como a tartaruga na corrida com a lebre. Devagar, mas constante e persistente a ponto de chegar na frente dos oponentes que se distraíram pelo caminho.

The Last of Us: fenômeno de audiência

Nas últimas duas semanas "The Last of Us" se tornou o mais recente fenômeno no streaming. Antes mesmo do ótimo terceiro episódio ir ao ar, a HBO anunciou que renovaria a série para uma segunda temporada.

A série é sucesso de crítica e público. Com um índice de aprovação de 97% no Rotten Tomatoes, o segundo episódio alcançou 5,7 milhões de espectadores na HBO e HBO Max nos EUA no último domingo. Isso representa um salto de 22% sobre os 4,7 milhões que sintonizaram o primeiro episódio, marcando o maior crescimento de audiência na segunda semana para qualquer série dramática da HBO na história da rede. O primeiro episódio já alcançou mais de 22 milhões de visualizações.

Vitória crescente da Sony

Entre as principais plataformas, apenas a Netflix não dá prejuízo atualmente. Por outro lado, a Sony reporta anualmente mais de US$ 3 bilhões de lucro com o streaming.

Por volta de 2015, quando os grandes grupos de mídia se deram conta que o streaming não era somente um produto de nicho, e que a Netflix era uma ameaça real, conversas extremamente difíceis começaram a acontecer dentro das empresas que passaram a ver seus negócios ameaçados.

Dentro da Disney, Warner, Paramount e até Globo, a questão era a mesma: entrar na guerra do streaming e lançar uma plataforma proprietária, desembolsando bilhões; ou se tornar um vendedor de armas para essa guerra. Apenas produzir conteúdo e vender para quem pagar mais foi a escolha da Sony. A maioria dos outros gigantes optou por entrar na guerra lançando suas próprias plataformas.

A Globo lançou o Globoplay em 2015. A Disney anunciou a compra da 20th Century Fox, em 2017, para ter mais conteúdo, lançar o Disney+ e conseguir concorrer com a Netflix. A WarnerMedia, que chegou atrasada na corrida, durante a pandemia disse que passaria a lançar seus filmes diretamente no streaming, acabando com a janela de 90 dias do cinema (ano passado a decisão foi revertida). Em 2022, a ViacomCBS até mudou seu nome para Paramount Global para "refletir suas ambições no streaming".

Vendendo armas para o inimigo

No ano passado, quando já não era CEO da Disney, Bob Iger disse que ao vender seu conteúdo para a Netflix a Disney estava ajudando a concorrente a construir uma plataforma e um relacionamento direto com os consumidores da Disney.

"Enquanto faziam isso, eles usavam parte do alcance que os ajudamos a criar e o crescimento das assinaturas para financiar sua própria produção de televisão e cinema, competindo diretamente conosco em talentos e histórias. E acordei um dia e pensei, basicamente estamos vendendo tecnologia de armas nucleares para um país do Terceiro Mundo, e agora eles estão usando contra nós", concluiu Iger que no final de 2022 retornou ao posto de CEO da Disney.

Na Globo a lógica foi semelhante. Era melhor lançar o Globoplay antes que outro concorrente acabasse criando uma plataforma que se tornasse líder na produção de conteúdo brasileiro antes da Globo.

Mas com tanta gente produzindo conteúdo para diferentes plataformas, encontrar conteúdo que se destaque em meio ao recorde de novas produções é um desafio crescente. E isso se tornou a grande vantagem da Sony.

A era de ouro dos games

Se por um lado a Sony não tem sua própria plataforma de streaming, de outro a dona do PlayStation tem algumas das marcas e propriedades mais reconhecidas do mundo. A empresa possui franquias como Seinfeld, Homem-Aranha, parte de James Bond, Jumanji, Homens de Preto e muito mais. A dona do PlayStation também é dona de diversos games que estão se tornando a próxima mina de ouro de conteúdo para filmes e televisão.

O mercado global de jogos valia US$ 184 bilhões em 2022, de acordo com pesquisa da Newzoo. Cerca de metade disso são jogos para celular, mas mesmo os jogos de console, que geraram US$ 52 bilhões em receita no ano passado, já são maiores do que o mercado global de cinema, diz o WSJ. Antes mesmo da pandemia a indústria de games já havia passado a do cinema.

Os quadrinhos funcionaram para a Disney com a Marvel, os romances deram certo para Warner com sagas como "Game of Thrones", mas achar histórias mundialmente conhecidas e que possam render extensões e novos produtos é cada vez mais difícil.

Mas a indústria de games está cheia delas. Halo, na Paramount, foi um grande sucesso. The Witcher, na Netflix, superou todas as expectativas. Há inúmeros exemplos nos últimos anos. "Uncharted", "Mortal Kombat", "Sonic the Hedgehog", "Sonic the Hedgehog 2", e "Resident Evil: Welcome to Raccoon City" e as séries "Arcane", "Resident Evil" e "Cyberpunk Edgerunners" entre outras.

A durabilidade das franquias de games é impressionante. Grand Theft Auto foi lançado em 1997, e até hoje, apenas na plataforma Steam, mais de 2,5 milhões de pessoas jogam o game todos os meses. O jogo tem em média 111 mil jogadores online simultaneamente no Steam. E ele é somente o décimo título mais jogado na plataforma. Counter Strike e Dota 2 lideram, com o primeiro chegando a ter picos de mais de 1,1 milhão de usuários.

Playstation Productions é nova arma

A Sony também é dona de um grande estúdio de Hollywood e uma das maiores gravadoras do mundo. Em 2019, a companhia lançou a PlayStation Productions para ajudar a converter suas franquias de jogos em filmes e séries de televisão. Outras séries de televisão baseadas em jogos da Sony incluem "Horizon Zero Dawn" da Netflix e "God of War" da Amazon. Além de ganhar com os licenciamentos das franquias, a Sony também ganha ao vender seus games e produtos relacionados. Sempre que uma produção baseada em um jogo entra no ar, as vendas disparam.

É difícil calcular a contribuição que as séries e filmes dão para a divulgação e aumento de vendas das franquias de games, mas ela é enorme. Além de atrair antigos jogadores nostálgicos de volta, trazem um novo público para o game.

Por anos se lançaram filmes de games, mas boa parte era um amontoado de lixo. Segundo Doug Creutz, analista de entretenimento, mídia e jogos da Cowen, o boom atual difere porque as empresas estão levando o meio mais a sério e estão focadas em "criar uma experiência de qualidade em vez de apenas ganhar dinheiro".

"Não é diferente do que aconteceu com o gênero de quadrinhos há 20 anos", disse Creutz ao TheWrap. "Quando os criadores começaram a levar a sério como um meio para contar histórias amplamente relacionáveis, o público além dos fanboys também começou a levar isso a sério."

O termo guerra do streaming foi inspirado por Game of Throne. Na época que as empresas começavam a entrar no streaming, a série era um fenômeno. Mas a Sony, quando fez a pergunta se teria sua própria plataforma de streaming, talvez tenha concluído: "Por que tentar derrotar os Lannister quando você tem a oportunidade de ser o Banco de Ferro?" Fornecer armas para os gigantes em guerra pode ser um ótimo negócio.

PS.: A discussão em torno dos videogames no Brasil não deveria ser se eles são um esporte ou não, mas sim qual ministério do governo deveria estar encabeçando os esforços para que esta indústria cresça no país. Os games já faturam mais que o cinema. Além disso, geram alto volume de propriedade intelectual, o que na prática significa mais empregos qualificados e divisas com exportações.

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