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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para virar TV, Netflix cancela séries, quer esportes e foge do prejuízo

Colunista do UOL

23/01/2023 04h00

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Resumo da notícia

  • Para concorrer com a TV, Netflix busca ser mais popular e atrair público mais abrangente
  • A plataforma quer transmitir esportes ao vivo, mas não quer pagar altos valores de licenciamento para evitar prejuízos
  • Um dos diferenciais da Netflix frente aos seus concorrentes é que não perder dinheiro e ter feito o lucro crescer
  • A Disney enfrenta crescente desconfiança do mercado e até divulgou uma apresentação para defender seus executivos
  • CEO da Disney afirmou que a TV está à beira do abismo, mas plano da empresa de crescer no streaming tem trazido altos prejuízos
  • A chegada de publicidade em plataformas como Netflix e Disney+ estão mudando até o tipo de conteúdo lançado

A Netflix não esconde sua ambição de roubar espectadores e anunciantes da TV. O plano, como o anúncio de resultados na quinta-feira passada mostrou, após ajustes no conteúdo e cortes no orçamento nos últimos meses, parece estar funcionando.

A Netflix divulgou que superou sua própria previsão de ganhos de assinantes no último trimestre de 2022, adicionando quase 7,7 milhões de novos clientes. O número foi 70% superior ao que a empresa havia previsto, 4,5 milhões. O sucesso da série "Wandinha", e dos filmes "Glass Onion: Um Mistério Knives Out" e "Troll", ajudaram no resultado.

A receita da Netflix também superou ligeiramente sua projeção, sugerindo que o novo plano baseado em publicidade lançado no último trimestre não gerou uma grande redução entre os assinantes atuais de planos mais caros.

A Netflix também projetou que a receita do primeiro semestre de 2023 cresceria cerca de 4% em comparação ao mesmo período do ano passado. O número é o dobro do aumento de 2% registrado no quarto trimestre. A empresa prevê que o aumento de assinantes e do lucro deve seguir nos próximos meses.

A explicação para o aumento do lucro é que a Netflix vai apertar o cerco para quem compartilha senhas. Segundo a empresa, os testes na América Latina sugerem que combater o compartilhamento de senhas levou a uma "receita geral melhorada, que é nossa meta com todas as mudanças de planos e preços".

Os bons resultados e perspectiva positiva fizeram as ações da Netflix dispararem na bolsa de valores, chegando a subir mais de 8,5% na sexta-feira. Adicionar 7,7 milhões de assinantes foi positivo, mas fazer isso sem perder dinheiro e podendo ganhar ainda mais animou os investidores.

As ações da Netflix já subiram mais de 48% nos últimos seis meses, período em que a empresa anunciou sua entrada na publicidade, cortou custos, realizou grandes cortes de funcionários e retomou o crescimento de assinantes. Em meio às boas notícias a empresa também adiantou que Reed Hastings, fundador da Netflix, deixará o posto de co-CEO.

Enquanto a Netflix realiza uma transição aparentemente tranquila, voltando a crescer e lucrar, suas principais concorrentes estão em crise. A Warner Bros. Discovery corta para pagar sua alta dívida e a Disney passa por uma de suas maiores crises. No final do ano passado a Disney demitiu o CEO, Bob Chapek, por pressão de acionistas, e agora trava uma nova batalha com fundos ativistas que querem ver mais lucro das plataformas de streaming da empresa.

Bob Iger, que voltou da aposentadoria para retomar o posto de CEO da Disney, posição que ocupava antes de Chapek, inclusive já vem sendo pressionado para deixar o cargo. Nelson Peltz e seu fundo de investimentos Trian, que comprou US$ 900 milhões em ações da Disney (0,5% da empresa),

Iger e Peltz concordam em um ponto: o streaming da Disney tem problemas e precisa mudar de rota. A Disney perdia mais de US$ 1 bilhão por ano com suas plataformas de streaming desde a estreia do Disney+. Mas em 2022 o prejuízo disparou. Nos primeiros nove meses de 2022 a empresa perdeu mais de US$ 2,5 bilhões com a área. A hemorragia financeira foi uma das razões da demissão de Chapek.

Por que a Netflix não tem futebol ao vivo?

Enquanto a Disney patina, a Netflix projeta um fluxo de caixa livre (a quantidade de dinheiro disponível em uma empresa que sobra após todos os gastos serem quitados) de US$ 3 bilhões para o ano atual. Vale lembrar que além da Netflix, nenhum outro streaming dá lucro e nem deve fazer isso antes de 2025. A Netflix disse nesta semana que já passou da fase de maior fluxo de caixa na construção de seus negócios e agora está focada em gerar forte fluxo de caixa livre.

Gigantes como Apple, Google e até players tradicionais como Disney e Paramount têm investido bilhões para terem grandes atrações esportivas ao vivo em seus streamings. A Netflix segue distante do movimento, mas não é por falta de vontade.

A Netflix chegou a conversar com a F-1 e donos de direitos de campeonatos de surf e tênis, mas o negócio não andou. Ted Sarandos, co-CEO da companhia, disse em dezembro em uma conferência com investidores que a empresa não se opõe a ter esportes, mas não fechou nenhuma compra de direitos porque a conta não faz sentido e não estão dispostos a perder dinheiro. "Não somos antiesportivos, somos apenas pró-lucro"

Neste ano, a Netflix fará sua primeira transmissão de evento ao vivo, tendo o comediante Chris Rock como anfitrião. Em entrevista à Bloomberg, Sarandos também adiantou que ter canais FAST (Free Ad-Supported Streaming TV, canais online gratuitos com anúncios) estão nos planos.

Prejuízo para ganhar mercado

Empresas de tecnologia como Amazon e Apple têm sido agressivas na aquisição de direitos esportivos para suas plataformas de streaming, principalmente nos Estados Unidos, onde o mercado está saturado e crescer é cada vez mais difícil.

A Amazon está pagando bilhões pelos direitos exclusivos do "Thursday Night Football" da NFL no Prime Video, enquanto a Apple fechou acordos para a Major League Baseball e a Major League Soccer no Apple TV+. Mas Sarandos - embora tenha feito uma ressalva de "nunca diga nunca" sobre a aquisição de direitos esportivos pela Netflix - comentou que a economia dos esportes ao vivo é construída em torno da TV paga e não faz sentido para o streaming.

Mas vale notar que nem os gigantes de tecnologia estão alheios ao novo cenário econômico. Amazon, Google e Microsoft (vista por muitos como uma potencial compradora da Netflix) anunciaram milhares de demissões nas últimas semanas.

A estratégia de comprar grandes eventos, principalmente os esportivos por atraírem grandes audiências, é efetiva para atrair assinantes e ganhar mercado, mas costuma trazer prejuízos. O modelo de compra de esportes na TV se sustentava porque a TV paga ajudava a fechar a conta cobrando caro do assinante.

Netflix copiando a Globo?

Em seu plano para se tornar a nova TV, a Netflix segue a mesma cartilha da Globo. A emissora brasileira abriu mão de competições e renegociou contratos até mesmo abrindo mão da exclusividade da Copa do Mundo de futebol. Manuel Belmar, diretor-geral de Finanças da Globo, já afirmou que a Globo quer ter todas as grandes competições esportivas, mas não fará loucuras nem terá prejuízos.

Uma consequência, como o colunista Mauricio Stycer apontou em sua newsletter semana passada, é que "a série ideal da Netflix deve ser como um cheeseburger gourmet, ou seja, um programa que seja ao mesmo tempo comercial, de fácil compreensão, mas com algo diferenciado, premium". Bridgerton, apontada como exemplo deste cheeseburguer gourmet, tranquilamente poderia ocupar a faixa das 18h da Globo, nota Stycer.

Um efeito colateral dessa transformação para TV é a radical mudança de conteúdo. Sai o conteúdo mais artístico e segmentado e entram os arrasa quarteirão. A chegada do plano com publicidade na Netflix deve acelerar essa tendência.

Por que a Netflix cancela tantas séries?

Cada vez mais a Netflix precisa que uma série retenha o público por muito tempo para garantir que mais publicidade seja exibida. A expectativa da empresa é que até 10% de seu faturamento venha de publicidade, algo como mais de US$ 3 bilhões por ano. Uma das razões do cancelamento da série "1899" foi a baixa taxa de pessoas assistindo o conteúdo até o final, além de seu alto custo de produção. Apesar de ter chegado ao segundo lugar no topo dos mais vistos em diversos países, a série não terá segunda temporada.

"Nunca cancelamos um programa de sucesso", disse Sarandos semana passada à Bloomberg. "Muitos desses shows foram bem-intencionados, mas falam para um público muito pequeno com um orçamento muito grande. A chave para isso é que você deve ser capaz de falar com um público pequeno com um orçamento pequeno e um grande público com um orçamento grande. Se você fizer isso bem, você pode fazer isso para sempre".

"House of Cards" e "Orange Is the New Black" foram pioneiras e marcaram território, mas hoje dificilmente funcionariam na nova Netflix.

Ironicamente, à medida que a Netflix fica cada vez mais parecida com a TV tradicional, a TV tradicional tenta criar produtos diferenciados para resistir ao apelo das gigantes de streaming. A guerra do streaming virou a guerra da mídia e está longe de acabar.

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