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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Precisamos de mais artistas empreendendo e menos engenheiros e Faria Limers

Robert Downey Jr. participa de painel na SXSW 2023 - Gary Miller/WireImage
Robert Downey Jr. participa de painel na SXSW 2023 Imagem: Gary Miller/WireImage

Colunista do UOL

19/03/2023 04h00

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É evidente que o colapso do banco SVB foi causado por uma sucessão de erros. O noticiário econômico oferece várias indicações dos problemas, como a crença equivocada na manutenção da taxa de juros ou os comunicados mal escritos.

Mas um aspecto importante foi como os próprios clientes do SVB, em grande parte gênios do Vale do Silício, aceleraram a quebra do banco que eles mesmos tinham dinheiro. O empreendedor Alexander Torrenegra, que era um correntista do SVB tendo as contas de duas de suas empresas, bem como suas contas pessoais, explicou o que aconteceu.

"Quinta-feira, 9h: em um grupo de mensagens com mais de 200 fundadores (de startups) de tecnologia (a maioria na Bay Area), perguntas sobre SVB começam a aparecer", escreveu Torrenegra no Twitter. "10:00: alguns sugerem tirar o dinheiro do SVB por segurança. Apenas benefícios. Nenhuma desvantagem", diziam os comentários no grupo.

Como a jornalista Elizabeth Spiers disse no NY Times "é fácil ver como uma rede de boataria de algumas centenas de CEOs - todos convencidos de que têm uma visão excepcional, todos entrando em pânico - pode sair do controle. Mas o que aconteceu naquele grupo de mensagens é uma extensão da maneira fundamental como esses capitalistas de risco operam, que é o pensamento de grupo em uma escala incrivelmente consequente".

Apoiados por um punhado de empresas de investimentos e seguindo os mesmos gurus e ideologias, até mesmo investindo nos mesmos bancos, eles se tornaram tão interconectados e parecidos que ficaram frágeis.

A turma do Vale do Silício, que na verdade está por todos os lados, e no Brasil de certo modo ficou conhecida como Faria Limers, é um clubinho restrito e pouco diversificado. Em sua maioria são homens brancos formados por universidades de prestígio, acessíveis apenas a uma minoria. Mas o fato é que eles quebraram outra vez e tiveram de ser resgatados pelo governo (a exemplo do que já havia acontecido na crise de 2008).

Ironicamente, essa turma também é bastante crítica ao governo, que na visão deles deveria ser sempre menor.

Artistas podem e devem contribuir mais

Obviamente, uma mentalidade cada vez mais parecida e com cada vez mais poder nas mãos tem consequências desastrosas, como estamos vendo. Então, qual é a alternativa?

A resposta não é fácil. Mas após uma semana acompanhando diversos debates no SXSW, chama atenção como artistas e criadores de conteúdo parecem ter muito mais a oferecer do que os gurus da tecnologia e os magos dos algoritmos. Em um mundo de incertezas e cada vez mais imprevisível, modelos matemáticos se tornam cada vez mais frágeis e a intuição ganha destaque.

Como o ChatGPT e outras inovações mostram, cada vez mais se trata de fazer as perguntas corretas, e principalmente, como contar uma história para as pessoas. Máquinas não são boas ou ruins, a maneira que elas são usadas por humanos é que determina o resultado.

"Temos que lembrar que as próprias estatísticas não são imparciais. Se você está superpoliciando um bairro e alimenta um algoritmo com isso, ele prevê mais crimes. Portanto, não é imparcial", disse Chelsea Manning, ex-analista de inteligência do Exército americano e que vazou dados para denunciar a ação das forças militares americanas em conflitos.

Também existe uma distinção essencial entre a elite do Vale do Silício e os artistas. Enquanto os primeiros sonham ganhar bilhões rapidamente, artistas querem construir algo maior do que eles, prova disso é escolherem uma carreira em que a grande recompensa é o reconhecimento público e o benefício financeiro uma consequência. As chances de se tornar bilionário no mundo da tecnologia são bem maiores do que nas artes.

Empreendedores e famosos

Mas artistas também são empreendedores. Nesta semana Ryan Reynolds vendeu a Mint Mobile, uma empresa de telefonia de baixo custo da qual era sócio, por US$ 1,35 bilhão para a T-Mobile. O astro de Deadpool usou sua notoriedade para impulsionar o crescimento da companhia do qual era dono de 25%.

Reynolds deverá receber US$ 300 milhões em dinheiro e ações. O ator também era garoto-propaganda da Mint e sua agência de publicidade era responsável pela publicidade. Recentemente, Reynolds apareceu em um comercial da companhia lendo um texto criado pelo ChatGPT. A ideia foi "para economizar dinheiro", ironizava a campanha.

Reynolds é um investidor prolífico. Ele é diretor de criação da empresa de tecnologia de publicidade MNTN e cofundador da empresa de produção e marketing Maximum Effort, que a MNTN comprou em 2021. Ele também investiu na Aviation American Gin, marca de bebida vendida para a Diageo por US$ 610 milhões em 2020. Reynolds segue como sócio minoritário das marcas vendidas.

No palco da SXSW, Robert Downey Jr. explicou que investiu na Aura, um serviço de segurança cibernética com inteligência artificial, porque se interessou pela prevenção de crimes cibernéticos por causa da onipresença da tecnologia em nossas vidas, o que levou ao progresso e ao perigo. O ator também explicou o investimento como resultado de sua preocupação em criar um futuro melhor para o filhos.

Kristen Bell foi ao SXSW para falar da fábrica de fraldas e produtos para bebês que lançou com o marido Dax Shepard. Segundo a dupla, a Hello Bello tem a intenção de criar produtos sustentáveis, de boa qualidade, e acessíveis. Segundo Kristen, a ideia foi uma resposta aos produtos das grandes corporações que ela encontrou no mercado quando se tornou mãe.

Priyanka Chopra Jonas falou sobre pela primeira vez ter alcançado paridade salarial em um filme.

Silvio Santos no Brasil e muitos outros famosos são hábeis empreendedores. Artistas também parecem entender melhor a audiência, são autênticos e hábeis em construir comunidades. Isso explica por que as marcas parecem cada vez mais tentar recrutar famosos para seus negócios.

De todo modo, os painéis com artistas e criadores de conteúdo no SXSW me pareceram os mais interessantes. Talvez seja o simples fato de trazerem um olhar diferente e furarem a bolha de uma suposta superioridade intelectual do Vale do Silício (também existem acadêmicos bastante alinhados a essa linha de pensamento).

Problema de imagem da elite

Antes mesmo do fiasco do SVB a crise de imagem do Vale do Silício já estava evidente. "Big is bad", ou grande é ruim, foi um tema recorrente no SXSW. O que não deixa de surpreender, já que o festival é um dos maiores eventos de inovação do mundo e reúne boa parte da elite do Vale do Silício. Críticas ao Google, Meta, Spotify, Netflix e gigantes do Vale do Silício foram recorrentes nos painéis.

A chegada do ChatGPT também deixou muita gente preocupada. "Acredito que será como uma onda enorme. Muitos serão impulsionados para a frente, outros vão afundar", disse Tim Ferriss, escritor e ícone do mundo tech, ao ser questionado sobre o tema. Ferriss tem dedicado cada vez mais tempo e atenção a experiências psicodélicas.

Difícil é saber quem conseguirá ou não surfar essa onda do ChatGPT. A última onda desse tipo foi a internet aliada aos smartphones e conexões rápidas, que criou dezenas de bilionários no Vale do Silício ao inventarem negócios como o Google, Facebook, Uber e Netflix.

Com estes bilionários também cresceu uma ideologia liberal, que com os anos deixou o altruísmo de lado e colocou algoritmos e lucros em primeiro lugar.

O lucro é meu e o prejuízo é nosso

Desde o ano passado o clima já era de terror no Vale do Silício com milhares de demissões e aumento da regulação dos governos no mundo inteiro. A quebra do banco SVB na semana passada foi o tiro final na combalida imagem dos gurus da tecnologia e isso ficou evidente no SXSW.

Estandes foram fechados às pressas no festival e até mesmo executivos foram vistos chorando nas ruas. Os três primeiros dias fúnebres deram espaço à euforia quando no domingo passado o governo americano anunciou que iria garantir e pagar os depósitos dos clientes do SVB e demais bancos regionais.

Bilionários, milionários e startups do Vale do Silício, muitos deles presentes no festival, vibraram com a notícia. Mas reforçaram a impressão de que o lucro é de uma elite, mas o prejuízo é de todos quando eles quebram. Como diz a frase, "é privatizar o lucro e socializar o prejuízo".

Arati Prabhakar, diretora do Gabinete de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca, disse em um painel que estava animada com as possibilidades da IA, mas também fez um alerta. "O que todos nós estamos vendo é o surgimento desta tecnologia extremamente poderosa. Este é um ponto de inflexão. Toda a história mostra que esses tipos de novas tecnologias poderosas podem e serão usadas para o bem e para o mal."

Em um mundo cada vez mais caótico e globalizado, a criatividade e a inovação nunca foram tão importantes. Mas também está cada vez mais claro que o fator humano não pode ser desprezado e será cada vez mais relevante. Os artistas podem contribuir muito para fugirmos do pensamento uniforme que no final acaba em prejuízo.

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