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Guilherme Ravache

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Anitta 'trapaceou' no Spotify tanto quanto outros grandes artistas

Anitta se torna alvo de polêmica ao chegar ao topo da parada global do Spotify - Reprodução
Anitta se torna alvo de polêmica ao chegar ao topo da parada global do Spotify Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

17/04/2022 04h00Atualizada em 18/04/2022 13h30

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Resumo da notícia

  • Anitta chegou ao topo da parada mundial do Spotify como artista com mais plays na plataforma de streaming de música
  • O feito nunca havia sido alcançado por outro brasileiro; dias depois, uma reportagem apontou o que poderia ser uma "manipulação" do resultado
  • Os "inimigos" de Anitta foram para as redes e reclamaram do que viam como trapaça e criticaram a artista
  • Entretanto, boa parte do que foi apontado como "trapaça", já está disponível oficialmente na plataforma para artistas como Anitta
  • Há muitos anos existe uma indústria paralela de impulsionamento de artistas no Brasil e exterior, Anitta e seus fãs foram mais eficientes
  • O novo contrato da cantora com a Sony Music Publishing e o crescente peso do Brasil para o Spotify podem ajudar a explicar o recorde de plays

Nessa semana, Anitta se tornou alvo de uma polêmica envolvendo seu recorde de execuções no Spotify com a música "Envolver". Após se tornar o primeiro artista brasileiro a liderar a parada mundial da plataforma de streaming de música, o site de tecnologia Rest Of World afirmou que os megafãs da cantora teriam manipulado os resultados.

Segundo a publicação, mais de 100 playlists com nomes como "Envolver #1", "Stream Envolver", "Envolver stream party" e "Envolver 20x" teriam sido criadas para facilitar a subida de Anitta rumo à liderança.

Não faltou internauta indignado com a cantora, apontando o que para muitos seria uma "trapaça" da brasileira. Mas pouco se falou sobre o papel do Spotify nesses resultados e como diversas grandes estrelas usam essas mesmas estratégias apontadas pela reportagem do Rest Of World. Basicamente, Anitta fez o que boa parte do mercado já faz. Impulsionar artificialmente certos artistas está longe de ser um segredo no mercado.

Há um ano, descrevi na coluna o que chamei de Jabá 2.0, a versão digital da antiga prática das rádios de "receber" para tocar a música de um artista. A criação de playlists fakes estava entre as estratégias, bem como pagar para entrar nas playlists de influenciadores e perfis com grande número de seguidores no Spotify.

Segundo fontes da indústria ouvidas pela coluna, se Anitta (sua equipe ou fãs) chegaram ao topo, foi por fazerem melhor o que a maioria dos grandes artistas já faz.

Jabá 2.0 e o papel do Spotify?

Em busca de aumentar suas receitas, em 2020 o Spotify lançou o Marqee. É uma ferramenta para promover artistas dentro de sua plataforma de streaming. Ou seja, quem paga ao Spotify para ter seu conteúdo impulsionado aparece mais vezes para os usuários, inclusive em playlists, como revelou essa reportagem da Bloomberg (e a Bloomberg nem se referia especificamente ao Brasil, já que o mecanismo é usado no mundo todo).

"Já percebeu como os grandes lançamentos internacionais como BTS, Justin Bieber, Adele, todos já estreiam no Top 20 do Brasil?", diz um produtor especializado em divulgação que trabalha com grandes artistas brasileiros "Quando uma dessas músicas é lançada, o Spotify coloca a segunda música como sugestão para os usuários. Isso faz o volume de execuções disparar. E o Spotify fez isso com a Anitta não apenas no Brasil, mas em outros países também".

Não há nada de errado na prática. Supermercados e grandes lojas há décadas fazem acordos com grandes fabricantes para dar mais destaque a determinados produtos nas gôndolas. Não é diferente com o Spotify. Qualquer um pode usar o Marqee e as informações sobre a ferramenta estão publicadas no site do Spotify.

O lado ruim desse modelo é que o alcance orgânico para quem não paga ou não é prioridade de uma grande gravadora diminui bastante, reduzindo o alcance de artistas fora do mainstream. É a mesma dinâmica que dificulta a entrada de novas marcas de produtos em supermercados, já que os pequenos têm menos poder de negociação.

Anitta como ferramenta de marketing

Segundo um executivo de gravadora ouvido pela coluna, o Spotify também determina quais artistas são estratégicos e "ajuda" esses nomes dando destaque na plataforma. As gravadoras têm papel chave nessa definição e trabalham em conjunto com o Spotify.

"O mercado brasileiro é fundamental para o crescimento do Spotify, ter uma artista brasileira no topo é ótimo para o marketing e gera muita mídia espontânea. A notícia da Anitta no topo das paradas saiu em todos os lugares, inclusive no exterior, equivale a milhões em publicidade", diz o executivo.

O Brasil é um dos maiores mercados do mundo para o streaming. Netflix, Disney+ e HBO Max têm o país entre suas principais bases de assinantes. A performance de Anitta, com a altíssima participação de brasileiros, atesta isso. Para o Spotify, ter Anitta no topo global foi excelente.

Anitta está em outro patamar

Anitta no início do ano assinou um mega contrato com a Sony já de olho na carreira internacional. A Sony é uma das três maiores gravadoras do mundo e um dos principais parceiros comerciais do Spotify globalmente. É natural que a cantora, uma das grandes estrelas da Sony, tenha tratamento diferenciado.

Mas note, este tratamento especial para Anitta nada mais é do que começar a ter os benefícios de astros do primeiro time global da Sony.

Outra ferramenta do Spotify, essa bem mais exclusiva, é o Discovery Mode, por ora à disposição somente de gravadoras. Este recurso permite que as equipes de artistas selecionem a música que desejam priorizar para descoberta, inclusive por meio das recomendações do Spotify. Durante o teste piloto, esse recurso ajudou as gravadoras a conseguirem pagamentos de royalties mais altos por meio da descoberta expandida, afirma a plataforma.

Sony Publishing é novidade

O novo contrato de Anitta com a Sony Music Publishing é outra novidade a ser considerada. De olho na carreira internacional, em janeiro a cantora fechou um acordo com o braço editorial da Sony. O plano era justamente potencializar o alcance da cantora. Líder mundial do segmento, a Sony Music Publishing cuida de artistas como Ed Sheeran, Beyoncé, Lady Gaga, Olivia Rodrigo, Calvin Harris, Jay-Z, Pharrell Williams, Rihanna e Travis Scott entre muitos outros.

Anitta segue na gravadora WarnerMusic, mas agora é a Sony que administra o catálogo da cantora.

Um fato ignorado por muitos é que a Sony e a Universal Music também são donas do Spotify, já que são grandes acionistas da empresa. As grandes gravadoras receberam 18% de participação no Spotify anos atrás como parte de um contrato de licenciamento, quando o serviço de streaming era apenas uma startup. A Warner vendeu sua participação no Spotify em 2018.

Segundo a Billboard, no final de 2020, a Universal ainda detinha cerca de 3,4% de participação no Spotify, enquanto a Sony tinha cerca de 2,85% depois de vender metade de suas ações em 2018, um número que deve ter se diluído desde então. Dado o valor de mercado atual do Spotify, essas ações valem centenas de milhões para a Sony.

No ano passado, a Sony gastou quase R$ 7 bilhões em aquisições de outras gravadoras e catálogos, incluindo a compra da Som Livre por R$ 1,4 bilhão. Essas novas propriedades devem aumentar ainda mais a influência da gravadora dentro do Spotify e outras plataformas de streaming.

Desgaste de Anitta

Segundo dois especialistas ouvidos pelo colunista Ricardo Feltrin, mesmo Anitta não tendo qualquer culpa, a suspeita de fraude pode desgastar a imagem da cantora. Eles não descartam ainda a possibilidade de terceiros usarem robôs para atacar os perfis da cantora e prejudicá-la no Spotify.

Diversos bolsonaristas, alguns notórios por suas artimanhas digitais, estão entre os inimigos declarados da cantora. Anitta ironiza publicamente o presidente Bolsonaro e alguns de seus apoiadores mais próximos há bastante tempo.

Como adiantado por Feltrin, o Spotify analisará o recorde de Anitta, como já faz em todos os casos de músicas que chegam ao topo da plataforma. Mas se de fato for identificado o uso de robôs, como o Spotify provaria que Anitta ou seu time os usou e não bolsonaristas, por exemplo?

Ou seja, mesmo comprovado o uso de robôs (o que é pouco provável) seria um beco sem saída para o Spotify, já que teria de comprar briga com sua principal estrela brasileira, com a maior editora musical do mundo (que também é um de seus principais acionistas) e ainda admitir que a plataforma pode ser manipulada por robôs em escala mundial.

Robôs fugiram do Spotify

"Ninguém da nossa indústria usa robôs desde 2021. Isso deixou de funcionar, o Spotify pega fácil. A Anitta está em uma das maiores gravadoras do mundo e trabalha com alguns dos melhores profissionais do mercado. Seria um erro muito básico usar robô, que é justamente o que o Spotify consegue pegar. Eu ficaria surpreso se isso acontecesse com qualquer grande astro de uma gravadora".

O Spotify baniu os robôs na plataforma justamente para não ter um concorrente para o Marqee, sua solução de promoção de artistas. Antes do Marqee essas redes de robôs eram bastante usadas por músicos no mundo todo. No Twitter, por exemplo, os robôs ainda são aceitos pela rede social, mas não no Spotify.

Mesmo a prática de estimular os fã-clubes a dar play ou criar playlists não é exclusividade de Anitta, isso acontece em todos os países e a boa parte dos artistas faz. O que a cantora tem é uma base bem mais eficiente.

Forcinha dos fãs

Acordos e incentivos para influenciadores e donos de grandes playlists divulgarem uma música ou destacá-la também é uma estratégia comum adotada pelas gravadoras, não é algo feito somente por Anitta.

Ele é Ele Eu Sou Eu foi a música mais tocada em streamings no ano passado, segundo o Ecad (Escritório Central de Arrecadação). O cantor Wesley Safadão, autor do sucesso, a exemplo de Anitta também tem um fã clube muito engajado. Além disso, Safadão é da Som Livre, gravadora que passou a fazer parte da Sony. E ele também estimula seus seguidores a ouvirem suas músicas e seguir playlists.

O erro de Anitta

Provavelmente, o "erro" de Anitta foi ter sido muito mais eficiente que seus concorrentes. Quando se trata de digital, alguns artistas brasileiros estão bem mais avançados que seus pares internacionais, apesar dos gringos terem orçamentos dezenas de vezes maiores.

Procurada, a assessoria de Anitta não retornou o contato. Já o Spotify enviou o link para a página onde explica o funcionamento de suas playlists.

Você pode não gostar de Anitta, mas seu sucesso é irrefutável. Ela provavelmente teve um impulso adicional por ser uma aposta global da Sony e o Brasil ser um mercado chave para o Spotify. Mas é a estrutura que também está à disposição de outros grandes astros mundiais. No final, foram os fãs da cantora que desequilibraram o jogo, enganando o sistema ou não. Se o modelo do Spotify é injusto com artistas menos conhecidos, não é culpa da Anitta. Prepare-se para ver Anitta mais vezes no topo das paradas mundiais.

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