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Farol mais isolado do mundo fica em pico de ilha e foi construído "na raça"

Farol de Tridrangar  - Reprodução/Facebook@TridrangarLighthouse
Farol de Tridrangar Imagem: Reprodução/Facebook@TridrangarLighthouse

Colunista de Nossa

10/07/2022 04h00

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63º29'N, 20º36'O
Farol de Thridrangar
Vestmannaeyjar, Islândia

A charmosa Ushuaia, autointitulada "cidade mais austral do mundo", gosta de chamar o farol Les Éclaireurs, no Canal de Beagle, de "farol do fim do mundo". Mas ele empalidece se compararmos sua, digamos assim, taxa de isolamento com o Prídrangaviti, ou Thridrangar, na Islândia.

O farol argentino é bucólico, relativamente pequeno, um tanto poético. Poderia ser cenário de uma história de aventuras de um Júlio Verne da vida (já foi, ou quase isso).

Já Thridrangar parece que saiu de um conto que se passa na Terra Média ou da cabeça de um ilustrador metaleiro. É tão surreal que muita gente pergunta na internet se ele existe de verdade. Faz sentido, porque ele poderia muito bem ser computação gráfica, um CGI safado, uma locação engavetada de "Game of Thrones".

Só que Thridrangar existe. É uma pequena e radical maravilha da engenharia. Talvez seja o farol mais isolado do mundo e é, segundo mentes espirituosas das redes sociais, o melhor lugar para enfrentar o apocalipse zumbi.

O farol fica no arquipélago de Vestmannaeyjar, também conhecido como Westman. É o mesmo onde uma formidável erupção vulcânica nos anos 1960 fez brotar uma ilha, da qual falei aqui.

Em islandês, "thridrangar" significa "três pilares de rocha", mas na verdade são quatro rochedos que brotam do mar aqui. O farol fica no maior deles, que se ergue a 40 metros sobre a superfície.

Farol de Tridrangar  - Reprodução/Facebook@TridrangarLighthouse   - Reprodução/Facebook@TridrangarLighthouse
Farol de Tridrangar
Imagem: Reprodução/Facebook@TridrangarLighthouse

As ilhotas localizam-se a cerca de 15 quilômetros da costa islandesa e da ilha principal de Westman. São tão isoladas que nem há fotos de satélite no Google Maps.

Mas não faltam fotos e vídeos impactantes. Segundo o site "Iceland Monitor", as imagens do fotógrafo Árni Saeberg viralizaram graças a um fã confesso do país, Justin Bieber.

O cantor gravou um clipe no país em 2015, e sua passagem pela ilha fez barulho, mas foi um tanto ridicularizada pelos locais. De acordo com o "Guide to Iceland", Bieber nadou em uma lagoa que pode matar alguém de frio (literalmente), andou sobre frágeis e centenários musgos (algo que islandeses odeiam quando turistas fazem) e se debruçou em rochas instáveis em desfiladeiros. Fora que estava sempre com roupas inadequadas para as temperaturas do país.

Bieber, o influencer, divulgou as fotos de Saeberg, deixando o farol famoso entre sua legião de fãs. Dentro do país, talvez mais relevantes sejam as contribuições de Yrsa Sigurdardóttir, escritora que ambientou um de seus bem-sucedidos romances policiais nos rochedos, e o Kaleo, banda de blues rock islandesa que vem usando a geografia única da ilha em seus clipes. Ela já gravou em iceberg, em vulcão e, no ano passado, em Thridrangar:

A construção

Se você se deu o trabalho de começar a assistir ao vídeo acima, viu que os músicos chegaram ao farol de helicóptero. É a única forma possível.

Pois é, ele teria sido construído com a ajuda de helicópteros. Isso se a máquina já existisse quando as obras começaram, em 1939. Então, não foi assim que o farol foi erguido.

Máquinas com sistema de voo semelhante já existiam desde a Antiguidade. Mas eram protótipos ou, às vezes, brinquedos, sem autonomia de voo. No século 15, Leonardo da Vinci projetou um, mas não construiu.

Desenho de "helicóptero" de Leonardo Da Vinci - Domínio Público - Domínio Público
Desenho de "helicóptero" de Leonardo Da Vinci
Imagem: Domínio Público

Diversos inventores se jogaram na missão de tirar o voo vertical com hélices do papel a partir do século 18. Entre os anos 1900 e 1930, houve avanços significativos, e o helicóptero já era uma realidade, porém ainda muito restrita. A produção em escala industrial começou apenas na década de 1940.

Ou seja, não havia helicópteros disponíveis para construir o farol. Então, os islandeses tiveram que navegar até o rochedo e escalá-lo. Na raça. "Reunimos montanhistas experientes, todos das Ilhas Westman", contou o projetista-chefe do farol ao jornal "Morgunbladid".

Trouxemos brocas, martelos, correntes e grampos (...). Quando eles chegavam perto do topo, não tinha como se segurar na pedra, então um se ajoelhava, outro ficava de costas e o terceiro subia sobre eles para chegar à ponta do penhasco. Faltam palavras para descrever como eu me sentia testemunhando esse procedimento incrivelmente perigoso."

Subindo rochas escorregadias dezenas de metros acima de um mar gelado e raivoso, sob vento e chuva, eles trataram de construir o farol. Em 1942, a obra foi concluída.

Um novo país

Os três anos de obras coincidiram com uma profunda transformação na Islândia — e na Europa. Por mais de 500 anos o país fez parte da Dinamarca, mas desde 1918 tinha autonomia limitada.

Em 1940, a Alemanha nazista invadiu a Dinamarca. Hitler demonstrava muito interesse pelos países escandinavos, mas a Islândia, a princípio, declarou neutralidade na guerra, apesar da pressão dos ingleses por uma posição bem definida.

Pouco depois, preocupados com o avanço inimigo, os britânicos se anteciparam e invadiram a Islândia. Nada de novo no jogo das potências.

Em seguida chegaram os canadenses e americanos. O país, estrategicamente localizado no meio da faixa mais setentrional do Atlântico Norte, abrigou bases dos Aliados durante a guerra.

A presença de soldados bagunçou o dia a dia local, como é de se imaginar. Não foi uma ocupação paz-e-amor, a prostituição aumentou e minas navais viraram um perigo constante em um país que, afinal, é uma ilha. Outro dia mesmo, em dezembro de 2020, pescadores encontraram uma mina não detonada.

Em 1944, após um plebiscito, a Islândia cortou de vez os laços com a Dinamarca, declarou independência e virou uma república. Britânicos e americanos deixaram para os islandeses muitas das instalações que construíram, incluindo o Aeroporto Keflavík, o principal do país.

Os EUA continuaram na Islândia até bem depois do fim da Segunda Guerra, cumprindo a função de exército. Os últimos homens deixaram o território em 2006. Ficou um estranho vácuo: a Islândia passou a ser o único membro da Otan a não ter Forças Armadas fixas e efetivas.

Seria apenas uma excentricidade geopolítica de uma instituição meio esquecida em um país recheado de excentricidades (e desejado por causa delas). Mas com o ressurgimento da Otan no cenário internacional, em reação à invasão russa na Ucrânia, talvez isso tenha mais importância algum dia.

Hoje, a única invasão que a Islândia tem enfrentado é a dos turistas em excesso. Mas, se tudo der errado, o jeito é correr para o farol.

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