Não é só o Brasil: Canadá atrasa obras de vila devastada por caos climático
50º13'N, 121º34'O
Lytton
Thompson-Nicola, Colúmbia Britânica, Canadá
As notícias se repetem. Todo verão, vemos que a situação da cidade destruída pelas chuvas e enchentes no verão passado não melhorou muito. A depender da região, só o mês muda. Apenas no ano passado teve Bahia em abril, Rio Grande do Sul em junho e em setembro, Alagoas em julho, Santa Catarina em novembro…
Mas as dificuldades (ou o descaso) do poder público em tentar resolver a situação após a tragédia não são exclusividade nossa. O Canadá, acometido por incêndios florestais e ondas de calor tremendas nos últimos anos, também tem seus casos.
É a história de Lytton
Lytton é uma vila de montanha que se adaptou a todos os ciclos econômicos que marcaram a Colúmbia Britânica e boa parte do oeste da América do Norte. Teve a corrida do ouro, vieram as ferrovias, depois os lenhadores e, por fim, o turismo sazonal de aventura, desbravador de seus rios e florestas.
Antes, e por muito tempo (até 10 mil anos, segundo achados arqueológicos), a área era habitada pelas Primeiras Nações, termo genérico que o Canadá usa para se referir aos vários povos indígenas do país. Hoje, o território das Primeiras Nações de Lytton inclui diversas reservas do povo nlaka'pamux.
Bem mais breve é a ocupação de europeus e seus descendentes. O vilarejo surgiu em 1858, durante a corrida do ouro do Cânion Fraser. Em 2021, apenas 163 anos depois, ele virou uma cidade-fantasma da noite para o dia.
Lytton é um tipo de lugar que, infelizmente, está ficando mais comum em nossos tempos. Os destinos turísticos destruídos pelas mudanças climáticas.
Que lugar é esse?
Edward Bulwer-Lytton foi um escritor de sucesso e influência no século 19. Ele cunhou algumas frases famosas da literatura inglesa, como "a caneta é mais poderosa do que a espada", e escreveu uma das aberturas de livro mais conhecidas do mundo.
"It was a dark and stormy night" ("Era uma noite escura e tempestuosa"), de "Paul Clifford" (1830), ficou tão manjada que virou um clichê, repetido, ironicamente ou não, em tudo que é mídia. De maneira geral, o tempo não fez bem à obra de Bulwer-Lytton, e desde os anos 1980 existe até um prêmio com o nome do escritor dedicado "às melhores piores coisas que você vai ler hoje".
Além de autor de romances, Bulwer-Lytton foi um barão e político britânico poderoso. Em 1858, tornou-se secretário de Estado para as colônias. Naquele mesmo ano, a Colúmbia Britânica foi oficializada como colônia (o Canadá ainda não era um território unificado). Então, Bulwer-Lytton acabou recebendo as devidas homenagens de sempre.
Lytton, o vilarejo, desde então tirou proveito de sua localização, em meio a grandes rotas de transporte, fossem hidrovia, ferrovias ou rodovias. Mas a construção de uma nova estrada na década de 1980 que passa por outra parte da província deixou Lytton mais isolada. Assim, o turismo ganhou mais importância na economia local.
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Quero receberCom seus cerca de 250 habitantes, Lytton costumava fazer parte de roteiros em que ela não era o destino em si, mas parte de viagens para explorar e admirar a imensidão do interior canadense. As pessoas paravam na vila para ver a confluência dos rios Fraser e Thompson ou para fazer rafting com uma das empresas da região- - Lytton é a autointitulada capital do rafting no país.
Mas as ondas de calor dos últimos verões estavam deixando Lytton insuportável. Em junho de 2021, ela bateu um recorde surreal: por três dias seguidos, marcou a temperatura mais alta já registrada no país, chegando a 49,6ºC.
Pare e pense. Não foi nem a sensação térmica, foi a temperatura que quase bateu nos 50.
Não foi algo inédito só no Canadá. Nunca, na história registrada, o termômetro chegou tão alto em um lugar a uma latitude superior a 45º.
Nem os recordes da América do Sul foram tão longe. O recorde brasileiro, batido em 2023 em Araçuaí (MG), fica bem atrás: 44,8ºC.
O aquecimento acelerado das regiões montanhosas, como o oeste da América do Norte, ao lado da seca extrema que atingiu a região, ajudou a criar um cenário infernal em que ventos quentes desciam as montanhas em direção ao oceano, formando o domo de calor que atingiu a costa do Pacífico naquele ano.
Em 30 de junho, um dia após o recorde de temperatura, o fogo começou. Queimadas se espalharam pelo vale, engoliram florestas e chegaram a Lytton. Os incêndios atingiram 90% do vilarejo.
O mercado, o restaurante chinês, o pub, o hotel, o banco, a delegacia, a clínica médica. Tudo consumido pelo fogo, assim como mais de 100 casas e outros comércios, tanto na vila como na estrada e na reserva indígena.
Apenas duas pessoas morreram, porque todos os moradores foram informados para evacuar Lytton. Tivesse a catástrofe acontecido no Brasil, podíamos esperar dezenas ou até centenas de mortos.
No dia seguinte, Lytton estava em ruínas. Uma paisagem da Colúmbia Britânica que podia lembrar alguma aldeia atingida no Iraque pelos caças canadenses durante os combates contra os terroristas do Estado Islâmico, em 2015.
Lytton entrou em uma triste lista que só faz crescer: a de vilas charmosas, amadas por moradores e viajantes, destruídas por queimadas. Casos semelhantes aconteceram na Califórnia e no Oregon. O mais noticiado foi o de Lahaina, cidade histórica devastada no maior desastre ambiental que já atingiu o Havaí.
A imensa maioria dos moradores pode até ter escapado, mas isso não quer dizer que Lytton foi reerguida de uma forma que nenhum dos 5.199 municípios brasileiros atingidos por desastres naturais nos últimos dez anos pudesse imaginar. Quase três anos após a tragédia, Lytton está bem longe de ser o que era antes.
Segundo o "New York Times", um ano após o incêndio, só um quarto das propriedades estava limpo. O resto permanecia coberto de escombros, fuligem e cinzas.
Moradores queriam retomar suas vidas logo, mas a prefeitura dizia que precisava, antes, estabelecer e instalar estruturas e normas de segurança. Enchentes e indenizações minguadas deixaram a situação ainda pior. Para completar, em 2022 houve mais queimadas.
Em 2023, "Lytton ainda parece menos uma cidade do que um estacionamento com vista", descreveu o jornal americano. Era raro ver pessoas, quanto mais turistas.
Ela virou um microcosmo de um desafio atualmente global: as mudanças climáticas como uma nova, imprevisível e complexa variável na matemática que sustenta negócios sazonais
No último Natal, as primeiras obras de reconstrução foram liberadas. No começo deste ano, o governo anunciou um programa para reerguer a economia local. Tudo ainda bem devagar, numa situação semelhante à vivida na Barra do Sahy, em São Sebastião (SP).
Antes da tragédia, trilheiros, pescadores e outros tipos de visitantes mantinham o comércio aquecido entre maio e setembro. Ônibus traziam turistas estrangeiros. Agora eles não vêm mais.
Quem está aparecendo agora é o passado. Arqueólogos estão encontrando, nos escombros, milhares de artefatos indígenas, incluindo uma ponta de flecha de 7,5 mil anos.
Há quem reclame que essas atividades científicas estejam tornando o processo de reconstrução ainda mais lento. Mas há quem defenda que todo o território seja entregue de uma vez aos povos originários.
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