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Reportagem

Como o Vietnã transformou uma herança colonialista em um hit do Instagram

16º01'N, 108º02'L
Parque Sun World Bà Nà Hills
Hòa Vang, Da Nang, Vietnã

O telhado de duas águas bastante inclinado, pronto para encarar uma nevasca. Vários elementos decorativos e águas furtadas. Terraço balaustrado e entrada em arco. Chaminés altas e, às vezes, uma torre com telhado cônico.

Já faz mais de século que as mansões francesas inspiram o estilo das casas de endinheirados em paisagens bem diferentes ao redor do mundo. Elas estão em condomínios Brasil afora e formam o cenário surreal de uma cidade-fantasma na Turquia, por exemplo.

Um vila europeia? Que nada. Esse vilarejo é no Vietnã
Um vila europeia? Que nada. Esse vilarejo é no Vietnã Imagem: Getty Images

Mas é justamente uma ex-colônia da França que tem, digamos, o "lugar de fala" para tirar melhor proveito dessa padronização arquitetônica. Em uma vila nas montanhas do Vietnã, châteaux franceses foram transformados em parque temático.

Colonização francesa

A França invadiu a cidade de Saigon em 1859. Nas décadas seguintes, conquistou mais territórios e, em 1887, criou a União da Indochina para abarcar todas essas possessões: Anã, Tonkin e Cochinchina (que hoje formam o Vietnã), além de Laos e Camboja.

Em 1900, o capitão Victor Debay recebeu a missão de explorar as montanhas no entorno da cidade costeira de Da Nang, que à época tinha um importante porto colonial. No ano seguinte, ele encontrou um ponto elevado, mas relativamente plano, nos montes Bà Nà, cujo clima agradável poderia abrigar sanatórios e centros de lazer.

O governo da Indochina preferiu transformar a área em uma reserva, então foi só em 1919 que ela começou a ser explorada. Ganhou vilas, agências de correio, hospital, bancos, uma adega para rótulos especiais vindos diretamente da França? Toda equipada para receber oficiais, franceses importantes e também vietnamitas com bolsos fundos o suficiente.

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Guerras e mais guerras

As montanhas de mármore de Danang são o destino turístico mais importante da cidade de Da Nang, no Vietnã
As montanhas de mármore de Danang são o destino turístico mais importante da cidade de Da Nang, no Vietnã Imagem: Getty Images/iStockphoto

Em 1940, o Japão invadiu o Vietnã, que resistiu por meio de guerrilhas. Terminada a Segunda Guerra, com os japoneses derrotados, a França reocupou a Indochina. Faltou só combinar com o Vietminh, a Liga pela Independência, comandada pelos comunistas.

Como o Vietminh era mais forte no norte do que no sul, ele acabou formando um novo país, no norte. A França não aceitou, e uma nova guerra começou. Os europeus acabaram derrotados em 1954. Bà Nà, que já vinha sendo abandonado e pilhado no conflito, acabou totalmente entregue à voracidade da floresta.

Assim ficou, esquecido por décadas no silêncio nada silencioso da selva.

Surge o parque

Batizado de Sun World, o complexo fica 1.500 metros acima do nível do mar
Batizado de Sun World, o complexo fica 1.500 metros acima do nível do mar Imagem: Getty Images
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Em 1998, o governo de Da Nang decidiu ressuscitar Bà Nà e transformá-lo em um parque com reserva florestal, hospedagens, restaurantes e uma série de atrativos a fim de criar, na montanha, um novo polo turístico em um país que começava a ser descoberto.

Batizado de Sun World, o complexo fica 1.500 metros acima do nível do mar, e a apenas meia hora de distância do centro de Da Nang, cidade reconhecida por sua arquitetura colonial francesa e pelas praias.

A cidade antiga de Hoi An, tida como uma das mais charmosas do Vietnã e patrimônio cultural da Unesco, também fica na região. Isso facilitou inserir Sun World em roteiros pela costa central do país.

Hoi An, inclusive, é homenageada no parque, com pontes, estátuas e fontes replicando a cidade histórica. Essa, além da cópia da antiga cidade imperial de Hue, talvez seja a referência mais verossímil, em termos culturais e geográficos, encontrada no Sun World.

Vista aérea de jardins do parque Sun World Bà Nà Hills
Vista aérea de jardins do parque Sun World Bà Nà Hills Imagem: Getty Images

Mas quem é que quer verossimilhança em um parque de diversão? O charme do Sun World está justamente em seu sopão de referências excêntricas que o torna algo que já foi chamado de "um misto de Epcot com uma estação de esqui francesa com um retiro budista nas montanhas".

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O guia de viagem Fodor's o descreveu como "o lugar mais maravilhosamente confuso da Terra". Tão maluco que sua atração principal parece saída de um enevoado templo milenar escondido entre as nuvens, que nos joga para dentro do mapa de algum reino fantástico que habita nossa imaginação.

A vila afrancesada no topo da montanha tem direito a fonte ao estilo europeu
A vila afrancesada no topo da montanha tem direito a fonte ao estilo europeu Imagem: Getty Images

Mas que, na verdade, é puro suco de turismo nos tempos do Instagram. Voltaremos a ela, mas antes sigamos o tour.

A réplica de Hue, aos pés dos picos verdes do parque, e de Hoi An, ao subir um elevador, funcionam como um cartão de visitas do que está por vir. São um aperitivo, e talvez de uma redundância nauseante para quem deu a volta no mundo para chegar ali e agora está a poucas horas das verdadeiras cidades históricas. Para que ver cópias se você pode visitar as reais ali perto? Mas beleza.

É preciso subir mais para entender o Sun World. E isso só pode ser feito com o teleférico ininterrupto mais extenso do mundo.

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É uma viagem que dura quase meia hora e atravessa quase 6 quilômetros, subindo a montanha e atravessando as nuvens. O ponto final é uma vila afrancesada, como a que os colonizadores construíram há um século — mas com uma penca de melhorias inspiradas pela internet, a globalização e os deuses do consumismo.

O complexo tem passarelas e teleféricos que interligam os diferentes 'mundos', como nos parques temáticos
O complexo tem passarelas e teleféricos que interligam os diferentes 'mundos', como nos parques temáticos Imagem: Getty Images

A vila tem uma catedral gótica francesa, restaurantes franceses servindo vinho nas calçadas de pedra, com música francesa tocando no rádio. Tem um Moulin Rouge, mas tem também um táxi preto londrino. Tudo bem.

A vila serve de partida para as outras atrações, através de outros teleféricos, funiculares e trilhas pelo complexo. O Fantasy Park é um grande parque de diversões coberto, com brinquedos, fliperamas, parede de escalada, cinema 3D e um museu de cera.

O local parece ter se inspirado nos mundos fantásticos de Júlio Verne e Steven Spielberg, sem deixar espaço para realismo convincente nem para se preocupar com ideias autorais. Uma das áreas, aliás, se chama "Back to Jurassic".

A mesma mistura surrealista está no museu de cera. Nicole Kidman e Steve Jobs dão as boas-vindas para um desfile de estátuas em níveis variados de infidelidade estética.

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Marilyn Monroe, Luciano Pavarotti, Arnold Schwarzenegger, príncipe William, Nelson Mandela, Donald Trump, Vladimir Putin? O desfile é longo e bizarro. Ainda mais porque, ali perto, fica uma área espiritual, com jardim japonês, templos, pagodes e um Buda gigante.

Um buda gigante pertinho de um museu de cera com astros de Hollywood? Vale tudo no Da Nang Ba Na Hill
Um buda gigante pertinho de um museu de cera com astros de Hollywood? Vale tudo no Da Nang Ba Na Hill Imagem: Getty Images

Há outros jardins, de inspiração francesa, holandesa, que no fim do ano ganham uma grande árvore de Natal (cristãos no Vietnã: 8%). Não tem jeito, onde os humanos colocaram a mão em Bà Nà, tudo é um pasticho — ainda assim divertido e inusitado para os de espírito mais aberto.

Mas, para quem já estiver cansado de tantas homenagens e referências sobrepostas nesse coquetel açucarado de entretenimento, há as vistas para as montanhas. Sempre um refresco.

É numa dessas esvoaçantes paisagens que fica o cartão-postal do Sun World. A ponte que acabou se tornando um dos monumentos mais reconhecidos de todo o Vietnã.

A Ponte Dourada ou Ponte das Mãos virou um cartão-postal do Vietnã e é sucesso nas redes sociais
A Ponte Dourada ou Ponte das Mãos virou um cartão-postal do Vietnã e é sucesso nas redes sociais Imagem: Getty Images
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Talvez você já tenha visto fotos. Chamada de Ponte Dourada ou Ponte das Mãos, ela se estende por meros 150 metros, uma pequenez camuflada pelo gigantismo da obra, que serve de ímã para selfies povoarem redes sociais do mundo todo.

Ela se tornou um sucesso estrondoso, que colocou o parque no mapa do turismo internacional. Um feito, em se tratando de um país repleto de atrações naturais e culturais com muito mais relevância.

O barato da ponte se encerra aí. A vista inspirada e o design monumental. De resto, é um muito bem-sucedido marketing datado do longínquo ano de 2018 d.C.

O que reforça a atmosfera esquisitamente charmosa do Sun World.



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