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Reportagem

Zumbis do consumismo: shoppings abandonados proliferam nos EUA

33º57'N, 84º07'O
Antigo shopping Gwinnett Place
Duluth, Geórgia, Estados Unidos

A notícia chocou a pequena Duluth, na Geórgia, e as outras cidades que formam o condado de Gwinnett. Uma mulher foi encontrada morta atrás de uma porta em uma loja desocupada de um shopping.

O corpo já estava em avançado estado de decomposição. A polícia estimou que a mulher morrera duas semanas antes.

Como era possível, questionava a imprensa local à época, que alguém morresse em uma ex-loja da Subway, em uma praça de alimentação de shopping, e o caso só vir à tona mais de 10 dias depois, às vésperas do Natal, em pleno 21 de dezembro?

Isso só aconteceu porque o shopping também estava morto.

O caso ocorreu em 2017. Nos anos seguintes, dois funcionários foram assaltados no estacionamento e uma mulher foi presa por posse de drogas e prostituição. Cenas que seriam inimagináveis nos anos 1980, quando o Gwinnett Place Mall, abarrotado de gente e com o comércio à toda, era o grande ícone de consumo de um dos condados que mais cresciam nos Estados Unidos.

Hoje, o Gwinnett integra uma lista que cresce ano a ano: a dos shoppings abandonados nos EUA. Se atualmente existem cerca de 700 estabelecimentos do tipo em funcionamento no país, na década de 1980 eram uns 2,5 mil. Especialistas do mercado estimam que nos anos 2030 eles serão apenas 150.

Esses shopping centers zumbis já fazem parte da paisagem americana do século 21. O fotógrafo Matthew Christopher é um fissurado do assunto. Em um artigo a respeito, ele escreveu que o cativante nesses cenários sombrios pode ser "uma camada quase imperceptível de neblina que se forma entre o primeiro e o segundo andar de um átrio, os reflexos intermináveis de vitrines vazias ou um encontro casual com uma marmota nos restos de uma praça de alimentação".

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Para ele, é difícil lembrar de outra instituição social que custou tanto e ocupou tanto espaço físico para depois implodir tão rapidamente quando os típicos shoppings americanos de subúrbios, afastados dos grandes centros. De fato, desde que esse modelo de centro de compras coberto começou a se espalhar pelo país, a partir do Southdale, em Edina, Minnesota, em 1956, o sucesso foi tremendo.

Era muita gente se mudando para os subúrbios, com demandas e desejos (ou "dores", pra turminha do powerpoint). Os shoppings surgiram para essas pessoas. Para donas de casa isoladas em seus lares, esses novos espaços eram oportunidades de socialização e escape melhores e mais seguros do que os velhos bairros comerciais.

Nos anos 1980 e 1990, os shoppings viveram seu auge no país. Mas então eles começaram a se proliferar além da conta. Um shopping novo na região podia jogar os outros, mais antigos, na seção das coisas fora de moda e potencialmente perigosas - na visão, muitas vezes preconceituosa, de seus frequentadores.

Nos anos 2000, segundo Christopher, já era moda odiar shoppings. Muitos estavam decrépitos e datados quando chegou o "golpedemisericordia.com".

Sim, a internet trouxe uma concorrência inimaginável e a pandemia reforçou novos hábitos de consumo, mas não foi só isso. A estrutura e o tamanho dos shoppings era um problema.

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Você já deve ter visto. Um beco sem saída, uma vitrine fechada ou um corredor vazio criam uma espiral de decadência, um buraco negro do capitalismo nesses lugares. Se uma loja fechada não for substituída por outra rapidamente, as vizinhas correm risco de seguir o mesmo caminho.

"Enquanto um centro de conveniência na rua poderia simplesmente demolir uma seção de baixo desempenho e construir outra coisa, os shoppings são ilhas estáticas cercadas por mares de asfalto", compara Christopher. Por isso mesmo, esse modelo de lojinhas enfileiradas com saída para a rua está em alta.

Mas há quem defenda que os shoppings não estejam morrendo, mas que são um modelo de negócio em transformação. É uma tendência vista também no Brasil: eles estão deixando de ser centros de compras para se tornar centros de entretenimento, gastronomia, convivência, eventos e também de compras.

Além disso, nos EUA, os shoppings de luxo vão bem. Um estudo de 2022 apontou que as vendas e o tráfego nesses estabelecimentos aumentaram mais de 10%, e que houve mais aberturas do que fechamentos de lojas pela primeira vez desde 2016.

Quanto aos típicos e decadentes shoppings de subúrbio, os que não foram demolidos estão se adaptando. O Gwinnett aguarda desde a década passada uma prometida revitalização. Enquanto isso, ele habita um lugar privilegiado no imaginário coletivo de quem não o frequentou, pois foi escolhido como cenário do shopping de "Stranger Things".

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Há quem critique que a série da Netflix projeta uma década de 1980 estilizada em demasia, idealizada e cosmeticamente nostálgica. Mas sua produção pelo menos escolheu um típico shopping oitentista para a trama.

Não deixa de ser curioso que esses lugares mortos e às traças evoquem, hoje, "The Last of Us". É mais Ellie do que Eleven.

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Imagem: Wikimedia Commons

E no Brasil?

Mudanças de costumes, crise econômica e pandemia também afetaram o setor, mas não como nos EUA. Aqui, os shoppings já estão se transformando antes de fechar as portas.

Segundo a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), as opções de alimentação, lazer e serviço, que antigamente eram atividades secundárias, hoje fazem parte da maioria das visitas a esses centros. Além disso, em 2023 as pessoas passaram mais tempo (80 minutos) em média do que antes da pandemia (76 minutos).

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O Brasil tem 639 shoppings, de acordo com a Abrasce. Cerca de 30% estão em São Paulo (193), seguido de Rio de Janeiro (71), Minas Gerais (48) e Paraná e Rio Grande do Sul (40 cada). Acre e Rondônia têm somente um shopping center.

Em 2024, o país deve ganhar mais 18 centros do tipo, sendo sete em São Paulo. Nossos shoppings ainda estão mais para "Stranger Things" do que para "The Last of Us".



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