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Entenda como anomalia no campo magnético da Terra pode atrapalhar sua Copa

Região de menor intensidade do campo magnético da Terra, situada acima do continente sulamericano, tem efeitos que podem ser sentidos a partir de cem quilômetros de altitude - Getty Images
Região de menor intensidade do campo magnético da Terra, situada acima do continente sulamericano, tem efeitos que podem ser sentidos a partir de cem quilômetros de altitude Imagem: Getty Images

Mônica Vasconcelos

Da BBC News Brasil em Londres

28/06/2018 17h59

Quando o Telescópio Espacial Hubble passa por ela, seus instrumentos são desligados. Ignorá-la pode ser fatal. Em 2016, um satélite japonês novinho e caríssimo - o poderoso Hitomi, projetado para estudar buracos negros e aglomerados de galáxias - entrou nela desavisado e pagou por isso: sofreu uma pane e se despedaçou, para desespero dos astrônomos japoneses.

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Quando a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), em órbita em torno da Terra, atravessa seu território, astronautas em missão na estação relatam estranhas visões: explosões de luz, como fogos de artifício.

Estamos falando da Anomalia Magnética da América do Sul (AMAS), a região de menor intensidade do campo magnético da Terra, situada acima do território sul-americano, cujos efeitos mais evidentes podem ser sentidos a partir de cem quilômetros de altitude.

Ela foi identificada há cerca de um século e, apesar de afetar o funcionamento de satélites artificiais - com impacto econômico e humano -, a anomalia é pouco conhecida e não recebe a atenção merecida por parte da comunidade científica internacional, dizem cientistas brasileiros.

Em entrevista à BBC News Brasil, três pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos (SP), se revezam para explicar o que é o fenômeno - e por que ele nos interessa. Se você gosta de futebol, vale a pena ler até o fim.

O que é?

"A Terra é envolta em um campo magnético gerado internamente no planeta e que nos protege de tudo o que vem do espaço", diz o físico Antônio Lopes Padilha.

Esse campo magnético, explica Padilha, é gerado no núcleo líquido da Terra, a milhares de quilômetros de profundidade. O núcleo é formado, basicamente, por ferro e níquel. As condições do local, onde a temperatura e a pressão são altíssimas, geram uma grande quantidade de elétrons livres que circulam constantemente.

"O movimento desses elétrons gera uma corrente elétrica e essa corrente gera o campo magnético da Terra."

O campo magnético, porém, não é igual em toda a superfície do planeta. Em algumas regiões ele é mais forte que em outras.

"A região da Anomalia da América do Sul, historicamente chamada de Anomalia do Atlântico Sul, é a região de menor intensidade do campo magnético na superfície da Terra", diz Padilha.

"Ela cobre grande parte do continente sulamericano. Sua presença acarreta alguns fenômenos, principalmente na região conhecida como ionosfera, acima de 100 km de altitude."

As dimensões desse "buraco" variam de acordo com a altitude, explica a equipe do Inpe.

A 500 km de altura (órbita aproximada da Estação Espacial Internacional), a área da AMAS se expande entre -50° e 0° de latitude geográfica e -90° e +40° de longitude. Ou seja, em cálculo aproximado, a anomalia teria em torno de 90 milhões de quilômetros quadrados.

Como somos afetados?

Periodicamente, mudanças repentinas no campo magnético do Sol provocam a liberação súbita de grandes quantidades de energia. Esses fenômenos, conhecidos como explosões solares, liberam radiação eletromagnética que se propaga na velocidade da luz, chegando à Terra em 8 minutos. E também aceleram partículas para fora do Sol, podendo gerar as chamadas nuvens magnéticas, ou Ejeções Coronais de Massa (CME, na sigla em inglês). A nuvem viaja pelo espaço e, às vezes, atinge a Terra.

Ali dentro há partículas - prótons e elétrons. É uma massa de plasma que demora entre um e três dias para chegar à Terra e, quando chega, provoca tempestades magnéticas, levando à precipitação dessas partículas, que são altamente energéticas, sobre o planeta.

"O efeito mais bonito das tempestades magnéticas são as auroras (polares). Quando tem aurora, pode pesquisar, alguns dias antes houve uma explosão solar", explica à BBC Brasil o engenheiro eletricista e doutor em Ciência Espacial Clézio Marcos De Nardin, gerente geral do Programa de Clima Espacial do Brasil, Embrace/INPE.

Como o campo magnético que protege a Terra dessas partículas é mais fraco na região da AMAS, quando ocorrem explosões solares, os riscos de que as partículas energéticas liberadas pelo Sol atravessem o campo magnético naquela área são muito maiores.

Resultado: satélites passando pela anomalia são bem mais afetados pelas partículas radioativas - e precisam de proteção extra.

Transmissões via satélite podem ser afetadas pela anomalia - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

"A quantidade de partículas atingindo os satélites que estão passando na anomalia é muito maior aqui do que em qualquer outra parte do globo, excetuando as regiões das auroras", explica De Nardin.

"Sabemos, por exemplo, que os satélites austríacos são desligados quando entram na anomalia magnética e são religados quando saem na outra ponta. Isso é feito para prevenir problemas no computador dos aparelhos, porque uma partícula dessas pode danificar o computador ou mudar a atitude do satélite, levando à sua perda."

Foi o que aconteceu com o satélite japonês Hitomi, explicam os pesquisadores.

"Era um satélite de raios-x, satélite astrofísico. Passou na anomalia e ali sofreu tanto bombardeamento de partículas que se perdeu. Começou a girar em volta do próprio eixo e se espatifou. Depois, a Agência Espacial Japonesa veio a público explicar por que havia perdido o satélite. Não levaram em conta as previsões do clima espacial, que previam a chegada de nuvem magnética, o que aumentaria a precipitação de partículas na anomalia", diz De Nardin.

Até onde se sabe, para nós, humanos, a importância da anomalia magnética está associada aos riscos potenciais que ela traz para a rede de satélites do planeta - explica o cientista.

E à medida que as sociedades modernas se baseiam cada vez mais em satélites artificiais para atividades múltiplas - comunicações, navegação, meteorologia, defesa, observação da Terra e exploração do Universo - a busca de estratégias para driblar a anomalia torna-se cada vez mais vital.

"Nos últimos dez anos, temos desenvolvido muito a previsão do clima no espaço", explica De Nardin. O programa Embrace, liderado por ele, está entre os cinco mais importantes do mundo na previsão do clima espacial.

Driblando a anomalia

Prever o clima espacial é importante para todo o planeta - mas é fundamental próximo aos polos (onde as tempestades magnéticas podem afetar os sistemas de transmissão de energia) e na região da anomalia magnética.

Na AMAS, o que está em jogo é a grande quantidade de satélites que circulam pela área ou são estacionários ali.

"Por exemplo, é em torno do equador geográfico que reside a maior parte dos satélites de comunicação e outros satélites geoestacionários meteorológicos", explica De Nardin. Proteger esses equipamentos é fundamental.

"Imagine ficarmos sem a previsão de tornados no Golfo do México e nos EUA?"

Então, especialistas em satélites usam três estratégias principais para "driblar" a anomalia.

"Primeiro, construir sistemas mais robustos e resistentes à precipitação de partículas. Segundo, projetar computadores de bordo que permitam ao satélite operar por mais tempo sem necessidade de controle, com discos internos maiores e capazes de armazenar mais informação. E terceiro, controlar as operações para não coincidirem com tempestades magnéticas (o que é feito com base na previsão do clima espacial)", diz De Nardin.

Aviões são mais afetados na anomalia?

"Avião voa muito mais baixo, jamais chega a uma altitude dessa. Chegam a 10 ou 12 km de altitude no máximo - estou falando dos voos comerciais."

Ainda assim, existem estudos em andamento sobre o tema, acrescenta o físico e doutor em Geofísica Espacial Marcelo Banik de Pádua.

"Há pesquisas em andamento, tentando medir os efeitos (da AMAS) sobre a aviônica. Mas não se espera encontrar variações relevantes. É normal haver uma dose maior quando se está voando, porque você está mais alto e tem menos atmosfera para te proteger. Também espera-se que as doses sejam um pouquinho acima na nossa região (sob a anomalia), nada muito impressionate, mas é o que se quer medir."

Estação Espacial

O que se sabe é que o efeito é grande em grandes altitudes - por exemplo, na Estação Espacial Internacional.

Quando a ISS passa na região da anomalia, é comum os astronautas verem explosões de luz, como estrelas cadentes - mesmo quando estão de olhos fechados.

"Isso não acontece apenas na anomalia, mas ali acontece mais vezes", diz Banik de Pádua.

Uma possível explicação para esse fenômeno é que o nervo óptico, no fundo do olho dos astronautas, seria afetado pelas partículas precipitadas ali.

Durante a passagem da ISS pela região da AMAS, aumentam também os riscos associados às explosões solares.

Ou seja, ocorrida uma explosão solar, se o tempo de chegada da nuvem de partículas coincidir com a passagem da ISS na anomalia, as chances de que chovam partículas sobre a estação aumentam muito. Nesse caso, a equipe da ISS tem de tomar cuidado redobrado, explica De Nardin.

"Há uma sala blindada na ISS para os astronautas permanecerem durante previsões de chegadas de CME - daí a importância de centros de previsão do clima espacial, como o Embrace/INPE", ele diz.

Atividades extra-veiculares são proibidas nesses períodos.

"Se houver uma atividade extra-veicular na estação espacial - ou seja, se o astronauta sair da nave para fazer reparos ou experimentos - e coincidir de haver uma tempestade magnética nesse momento, o astronauta ficará bem mais vulnerável."

De Nardin enfatiza que explosões solares - e, por consequência, tempestades magnéticas - são sempre um risco para a ISS e sua equipe. Mas são bem mais perigosas quando a ISS passa na região da AMAS.

"Logo após uma explosão solar, as primeiras partículas que chegam são aquelas que foram aceleradas para fora do Sol imediatamente após a radiação. Elas são tão violentas que foram batizadas de 'killing particles', ou 'partículas matadoras'."

"Elas podem cruzar a blindagem da ISS como uma faca corta a manteiga. Podem cruzar os circuitos eletrônicos, queimar sua memória, atingir os instrumentos de bordo, destruir os processadores dos computadores, ou seja, o 'cérebro' da ISS."

Brasil

De Nardin conta que, nas palestras que faz, uma pergunta comum é: que efeito a anomalia teria sobre os seres humanos - em particular, no Brasil?

"Em princípio, a precipitação de partículas não afetaria diretamente a gente aqui embaixo. Não há nenhum vínculo com câncer de pele, nada disso. Estamos falando de coisas que são importantes acima de cem quilômetros (de altitude)."

Mas há, ao menos, um tipo de impacto possível. "Porque o cidadão comum está cada vez mais conectado ao mundo em tempo real. Tome como exemplo a Copa do Mundo da Rússia e imagine que a Seleção Brasileira está fazendo a disputa de pênaltis do jogo final - lembra dos pênaltis de Copa de 1994?", diz De Nardin.

"Você gostaria que o satélite de comunicações deixasse de transmitir neste exato momento?"

"Pois é, se tiver uma tempestade magnética e ele não estiver preparado para isso, e se não houver outro satélite de backup, isso pode ser uma realidade", conclui o pesquisador.

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