Sobrevivente a guerra e URSS, prédio vira hostel de torcedor mochileiro
O prédio número 145 da rua Aleksandra Nevskogo, em Kaliningrado, é um hostel tomado de "torcedores raiz". Na sexta-feira, um finlandês esticava o pescoço na cozinha apertada para "secar" a seleção brasileira contra a Costa Rica. Nada pessoal. Apostou cervejas no empate com outro finlandês.
O edifício tem a cara da velha União Soviética. O número é marcado com spray. Onde a parede não está descascada, existe aquele cinza cimento. Marcas da idade de um prédio que existe desde antes da Copa do Mundo e que mudou conforme as mudanças do mundo. Foi apartamento coletivo no comunismo – aqueles onde várias famílias moram. Mas sua origem é germânica, o que fez do prédio alvo de bombardeiros britânicos na 2ª Guerra.
Não há mais sirenes de ataque aéreo disparando em Kaliningrado, mas a primeira impressão do brasileiro Vitor de Brites não foi das melhores ao chegar na rua Aleksandra Nevskogo. Era noite e o Google Maps levou o torcedor para um edifício sem porta de entrada na fachada que dá para rua. Havia um caminho na lateral, mas ele não parecia recomendável.
“Tinha uns homens com cara suspeita e não quis entrar para ver. Os caras estavam na noite russa de calça e camiseta regata manchada de suor. Fiquei rondando na frente (do prédio). Eles me viram com mala e gritaram. Tive de ir para onde eles estavam.
Quando atenderam o interfone e abriram a porta de entrada do hostel foi um alívio e um medo ao mesmo tempo. Vi aquela luz vacilante no final do primeiro lance de escadas, paredes descascadas. Abri a porta do apartamento que fica o hostel e estava uma mulher que não falava inglês e um marinheiro que fez a intermediação”.
Vizinhança sinistra
O hostel funciona em um dos vários apartamentos do edifício. A hospitalidade e a estrutura não são o ponto forte. O público normal é de marinheiros que esperam a chegada de navios a Kaliningrado para conseguir emprego temporário. Desalojados por torcedores capazes de pagar quatro vezes mais pela diária, foram para os apartamentos vizinhos. Vitor recebeu um conselho a respeito deles.
“Falaram para eu tomar cuidado porque os caras oferecem uma dose de vodca para depois te obrigar a comprar uma garrafa inteira. Mas o fato de ter marinheiros bêbados no andar de cima faz a hospedagem mais carisma. Ofereceram vodca no meio da noite. Em russo. Eu estava voltando de uma lanchonete. Achei melhor só ser simpático. Agradeci e fui para o hostel.”
Os vizinhos vagam pela vizinhança do prédio e Vitor tem a teoria de que eles não saíram do hostel na Copa, foram saídos. “Devem ter expulsado os locais, loirinhos de olho azul que tomam vodca. Trocaram por loiros de olhos de olho azul que usam camisa de seleção”.
De fato, o preço inflou na Copa. Vitor se planejou com antecedência e escolheu o lugar mais barato da cidade, diária de mil rublos (R$ 58). Agora, a dona está cobrando 4,4 mil rublos (R$ 258). E o lugar está lotado até 29 de junho, dia seguinte a última partida na cidade entre Inglaterra e Bélgica. Os beliches receberão principalmente finlandeses, suíços e suecos. Mas também haverá nigerianos, chineses, marroquinos, mexicanos, espanhóis e mais brasileiros se esparramando nas camas.
Nota vermelha
A dona do hostel, Natalia Sikerina, 49 anos, conta que abriu as portas em 2014. Ela não fez grandes reformas num apartamento construído em 1928. “Não troquei muita coisa. Instalei tomadas, comprei uns quadros e uns beliches”.
E como comprou beliches. Há dois quartos com seis beliches e outro com oito beliches. Outro lugar apertado é a cozinha. Duas pessoas não podem caminhar sem precisar ficar de lado para não esbarrarem. E lá existem duas coisas que atraem os hospedes: a geladeira e a televisão em cima dela.
Mas ninguém consegue ver os jogos sem estar torto na cadeira. Para se ter uma ideia da precariedade do hostel, nem placa na entrada o local tinha. O que existe é um papel colado na parede e escrito a mão.
“Aquele cartaz foi colocado depois que eu e um mexicano reclamamos. Daria 4,5 de nota para o hostel. O mofo nas paredes, o cheiro esquisito, ninguém falar inglês, na primeira noite a água quente tinha acabado e não ligaram o gerador. Tomei o banho com água fria do (Mar) Báltico que faz bem para circulação e mal para o humor”.
Veterano de guerra
Mas experiências ruins viram boas histórias para contar no futuro. Vitor poderá dizer que dormiu num prédio que foi parcialmente destruído na 2ª Guerra. “Achei legal a história do prédio. Um lugar em que tive medo de perder o rim, agora é um lugar que sobreviveu a guerra. Outro problema é o entorno. De dia é bucólico: Nossa, que vida no campo! A noite é assustador: Nossa, vou ser estuprado e assassinado no campo”.
A cidade foi bombardeada porque Kaliningrado não nasceu russa. Fundada por cavaleiros teutônicos em 1255, estava em posse dos alemães até a 2ª Guerra Mundial. Atendia pelo nome de Königsberg. No final de agosto de 1944, caças britânicos atacaram a cidade em dias consecutivos. Somente na noite de 29 para 30 de agosto os aviões despejaram 480 toneladas de bombas.
Pouca gente morreu porque quase toda a população havia fugido para Alemanha. Sorte delas porque os alvos civis não foram poupados. Bairros inteiros viraram escombros, 41% das moradias da cidade foram abaixo. Entre os alvos, está o prédio em que funciona o hostel.
Andrey Storogenko, 63 anos, conhece bem a história porque os pais dele foram enviados para Kaliningrado depois da guerra. Missão, reconstruir a cidade. O trabalho incluiu o edifício número 145 da rua Aleksandra Nevskogo. Andrey conta que metade do prédio foi avariada. Ouviu dos pais que as paredes internas racharam, algumas ruíram e o telhado estava destruído.
Remoção forçada
Na frente do prédio, existe um resto de fundação. Andrey explica que era de uma casa que nunca foi reerguida. Andrey aproveita para contar que os pais dele não mudaram para Kaliningrado por opção. A guerra terminou em 1945, mas Stalin continuou a exigir esforços do povo. Obrigou estudantes que estavam terminando ou tinham recém-terminado o Ensino Médio a povoar e reconstruir os territórios conquistados na guerra. A mãe chegou para ser arquiteta e o pai pedreiro.
Havia tanta coisa para fazer que os trabalhos começaram no centro da agora Kaliningrado em 1947 e chegaram no prédio que virou hostel de torcedores somente em 1957. Neste meio tempo, os pais de Andrey se conheceram e casaram. Passada uma década de trabalho para o regime soviético, ganharam um lar para criar seus dois filhos.
Moradia coletiva
Mas o apartamento não era apenas dos Storogenko. Eles viviam num communalka, que eram aquelas moradias soviéticas em que mais de uma família mora junta. Cada uma tem seu quarto e dividem banheiro e cozinha.
Andrey conta que na maioria do tempo foram sete pessoas dividindo o teto, mas que chegaram a ser 10. Privacidade só existia no quarto. Era comum haver camas somente para os adultos. E desde aquela época existem pessoas vivendo apertadas no prédio.
O quarto era moradia de uma família inteira e nele estavam mesa, cadeiras, poltronas, eletrodomésticos, armários, cachorros e gatos. Ainda assim, Andrey conta que teve uma infância feliz. O sentimento mudou quando ficou adolescente.
“Por uma longa parte da vida esperei a 3ª Guerra Mundial com disparo de armas nucleares e o fim da humanidade”.
Ele conta que o apartamento foi coletivo até 1985. Naquele ano, morreu a última pessoa da outra família e os três quartos, dois banheiros e a cozinha ficaram para os Storogenko. O homem gostaria de se mudar, mas diz que não vai acontecer. Está velho, com problemas no coração e o prédio 145 da rua Aleksandra Nevskogo fica numa quebrada, mas perto do hospital.
“Pelo menos nestes dias de Copa a rotina está diferente. Isso é legal”
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