Não é fake de internet: Clarice Lispector entrevistou Zagallo em 1970

“A diferença entre quem escreve, como eu, e um desportista e atleta, como você, é que você é obrigado a parar mais cedo. Isso dá muita tristeza?”
Essa foi uma das primeiras perguntas feitas por Clarice Lispector a Mário Jorge Lobo Zagallo em um dia do final de março de 1970. Não, não se trata de mais uma das muitas citações falsas atribuídas à escritora que povoam a internet: ela realmente entrevistou o então técnico do Botafogo, para o Jornal do Brasil, pouco antes de ele assumir a seleção que viria a ser tricampeã mundial no México.
Um dos nomes mais importantes da literatura nacional, autora de clássicos como “A Hora da Estrela “, “A Paixão Segundo G.H.” e “Laços de Família”, Clarice teve uma carreira prolífica também como jornalista e cronista. Entre vários outros veículos, escreveu para a revista Senhor e os jornais Correio da Manhã, Diário da Noite e Jornal do Brasil.
Se o lado jornalista de Clarice é novidade para alguns, é possível que ainda mais surpreendente seja sua ligação com o futebol. Ela se considerava botafoguense fanática e, além de entrevistar Zagallo, escreveu sobre João Saldanha também em 1970.
“Zagallo é moço, fino de corpo, as pernas não são deformadas por uma musculatura violenta, como as de certos jogadores profissionais. É o tipo do bom rapaz e do bom colega”, escreve Clarice ao apresentar o treinador. A conversa aconteceu no jardim do Botafogo, no Rio de Janeiro, em um dia em que ventava muito e “as folhas das árvores caíam sobre nós”, segundo a escritora.
Como era de se esperar, não se tratou de uma entrevista “pingue-pongue” convencional. Em meio a observações pessoais sobre futebol, Clarice fala sobre a impossibilidade de viver de literatura no Brasil, a situação política nos Estados Unidos e o amor.
“Nós também, Zagallo, a vida é breve para uma arte tão longa”, observa Clarice sobre a vida de escritor, como se estivesse falando consigo mesma, quando o técnico menciona a brevidade da carreira de um jogador. “O atleta tem que aproveitar o máximo num mínimo de tempo”, diz ele.
Para Zagallo, eram poucos os jogadores que então podiam atingir uma situação econômica que lhes garantisse um futuro. Mais uma vez a escritora intervém para traçar um paralelo com a vida de artista. “Nós, com a clássica exceção de Jorge Amado e Érico Veríssimo, e agora o José Mauro de Vasconcelos, não podemos nos sustentar escrevendo livros.”
Zagallo diz que “futebol é um dom, como o de escrever”, e questiona Clarice se ela está satisfeita como escritora. “Não, mas é o que melhor sei fazer”, responde a escritora já emendando com a pergunta “o que você acha de Pelé e Garrincha?”. “São jogadores excepcionais”, crava o treinador.
A escritora deixa claro sua admiração por João Saldanha. Diz, porém, que Zagallo seria sua segunda opção para treinar a seleção. Mal sabia que justamente ele substituiria Saldanha pouco tempo depois.
Uma das maiores especialistas na obra de Clarice Lispector, a pesquisadora Nádia Gotlib explica que a escritora fazia essas entrevistas, antes de tudo, por dinheiro.
“Fazia para aumentar a renda mensal. Entrevistava amigos, escritores, personalidades com as quais por vezes não tinha nenhuma afinidade. Às vezes, os próprios amigos preparavam as perguntas e respostas, segundo depoimento de Antonio Callado prestado a mim e à Aparecida Maria Nunes”, conta Nádia.
A pergunta sobre o amor é a última da entrevista com Zagallo. Ela quer saber do técnico nada menos que a definição dele para o sentimento.
Aparentemente surpreso, o treinador leva um tempo para encontrar a resposta, o que leva Clarice a refletir: “é provável que ele, como a maioria das pessoas, nunca tenha parado o movimento da vida para reflexionar sobre a vida, e sobretudo para se fazer essa pergunta capital”.
“É um sentimento recíproco”, conclui Zagallo afinal.
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