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Rodrigo Mattos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mattos: Michael é a flor que furou o asfalto

Michael está vivendo uma grande fase com a camisa do Flamengo e Renato Gaúcho elogiou o atacante - GettyImages
Michael está vivendo uma grande fase com a camisa do Flamengo e Renato Gaúcho elogiou o atacante Imagem: GettyImages

16/11/2021 04h00

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Há uma poesia de Carlos Drummond de Andrade que trata da automatização da sociedade, quando os homens deixam de se encantar com o que há de belo e aleatório no mundo e se sentem entediados, entorpecidos por um mundo opressivo. Chama-se "A Flor e a Naúsea", e a flor, no caso, consegue nascer neste mundo cinza no chão de uma capital. De uma certa forma, Michael é a flor da poesia, aquele que surgiu em um cenário improvável e bagunça a ordem das coisas.

Sem ser titular do Flamengo, tornou-se artilheiro do Brasileiro. Sem ter todos os fundamentos desenvolvidos, é aquele que causa desequilíbrio em jogos da elite do futebol nacional. Sem ter uma trajetória regular no futebol, transformou isso em força como um elemento imprevisível.

Lembremos a carreira singular de Michael no futebol. Teve uma adolescência atribula, quase não treinou na divisão de base e chegou ao Goiás. De forma meteórica, uma temporada esfuziante, foi alçado ao elenco mais caro do país.

No Flamengo, sofreu todas as dores da ascensão repentina. Foi alvo de achincalhe e críticas pela disparidade do valor da sua contratação e seu rendimento no primeiro ano. Sofria de depressão neste período, como só veio a revelar depois em entrevista.

Com ajuda no clube, dos colegas e técnicos, foi batalhar sua superação da doença e, pelo menos publicamente, parece tê-la controlado. Aprendeu a explorar seus pontos fortes para acrescenta-los a um elenco estelar.

Diante do São Paulo, com Bruno Henrique e Gabigol em campo, foi o destaque com dois gols e uma assistência. Dominou uma bola de letra no ar —lance que pratica constantemente— e causou a ira de Reinaldo e são-paulinos que quiseram pagar de machos já que lhes faltava bola naquele domingo.

No futebol brasileiro, o lance plástico é uma ofensa como se viu no final de semana em que o colorado Maurício tomou cartão amarelo por embaixadas. O árbitro viu desrespeito.

Bem, Michael respeita a bola, o jogo lúdico e não o pragmatismo preto e branco que domina o futebol brasileiro. Seu movimento de pernas é ágil, sua cabeça parece trabalhar em rotações meio loucas onde tudo por acontecer, um drible endemoniado, um chute que vai na linha lateral. Corre como um menino até cansar, até estar morto.

Há algo em Michael que nos faz lembrar o que um dia foi o futebol brasileiro, mesmo o futebol mundial. Não há aqui nenhuma nostalgia, há muita beleza no jogo coletivo atual, na sua intensidade, nos seus movimentos coordenados, na busca por explorar espaços cada vez mais curtos.

Mas Michael era o tipo de jogador que fazia torcedores rirem nas arquibancadas de cimento dos nossos estádios antigos. Ele furou a modernidade para nos lembrar isso, ainda que execute funções táticas como fazem todos os atletas atuais.

Dizia Drummond:

"Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu."

E completa ao final: "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."

PS Não, ninguém está chamando Michael de feio. Drummond falava sobre ser uma flor imperfeita, mas capaz de vencer circunstâncias difíceis. E quem é perfeito afinal?