Blog da Amara Moira

Blog da Amara Moira

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

Jogador 'flagrado' com travesti segue viralizando nas redes

Um ano e pouquinho atrás, fiz minha estreia nas colunas do UOL Esporte justamente com uma matéria sobre travestis e futebol. Na época, falei que alguns anos atrás, não muitos, se você colocasse no buscador as duas palavras, tudo o que encontraria seriam casos de jogadores que foram "flagrados" com travestis, tendo que se explicar publicamente sobre o ocorrido. Alguns chegaram mesmo a alegar que "não sabiam/perceberam" que estavam com uma travesti (o que é sempre possível, ainda que na maioria dos casos seja só caô), enquanto outros apelaram para explicações mais estapafúrdias, sugerindo estar num momento autodestrutivo, com depressão, bebendo demais, essas coisas.

Bom, naquela coluna de estreia eu indiquei que as coisas já tinham mudado bastante, agora já surgindo outras respostas junto quando você vai atrás dessas palavras. A começar pelo nome das travestis sendo respeitado, em vez da aberração que o jornalismo de épocas anteriores fazia, e junto a isso casos de jogadoras trans que despontavam no futebol, times que estavam sendo montados apenas com pessoas trans, debates sobre a presença transgênera no mundo dos esportes, etc.

Pois bem, cá estou eu nas férias que eu havia me dado da coluna para resolver outros compromissos em que acabei me metendo, mas precisei tirar o dia hoje para escrever esse texto, porque novamente as duas palavras foram conectadas e estão viralizando nas redes sociais. Não de forma positiva, como eu gostaria de imaginar, mas na mesma lógica dos casos clássicos que todo mundo que acompanha futebol há mais de quinze anos certamente há de lembrar. Vou me poupar de trazer nomes, porque não acredito que devam ser eles os pontos discutidos.

A situação é a seguinte: uma travesti gravou um vídeo da hora em que recebia um pix de um jogador de futebol, supostamente após a realização de um programa. Ela está dentro do carro chique do jogador e, no final da gravação, levanta a câmera e mostra o rosto dele, que não sabia estar sendo gravado. O que parece ter acontecido é um caso de chantagem, com uma travesti se dando conta de que está atendendo um famoso (que aparantemente tinha pago míseros R$50 pelo programa) e resolvendo "multá-lo" ("não atendo jogador de futebol por menos de R$5.000", ela chega a dizer no vídeo).

Após receber o pix, ela garante que ele não tem com que se preocupar, "ninguém vai ficar sabendo", mas pega o rosto dele na câmera e pouco depois tanto o vídeo quanto prints das transferências (com o nome do jogador) estão circulando pelas redes sociais. É terrível a situação e eu não apoio esse tipo de conduta, mas quero chamar atenção para outros aspectos que esse acontecimento me levou a pensar.

Em primeiro lugar, a repercussão virulenta nas redes. Ela nos revela que, mesmo com todos os avanços que tivemos em relação às pautas trans, ainda hoje é considerado "engraçado" descobrir que algum famoso foi "flagrado" na companhia de uma travesti e que, para ele, isso seria "vergonhoso". Muitos posts alegam, inclusive, que não estão repercutindo o fato "por ser com uma travesti" e sim porque ele estaria traindo a companheira, mas acho que ninguém é ingênuo a ponto de cair nessa conversa, certo? A tendência à fofoca se une aqui à transfobia mais explícita.

Três anos atrás a saudosa Marília Mendonça comentava, num dos seus shows, que um dos integrantes da banda foi numa boate LGBTI+ e lá beijou a mulher mais linda que ele já viu. Os presentes gargalharam. Por quê? Porque, numa boate LGBTI+, a probabilidade de ele ter beijado uma travesti é enorme e só de existir essa possibilidade (ou então de achar que uma travesti possa ser bonita ou por ele a ter beijado publicamente) é algo ainda hoje considerado "engraçado". E, se é engraçado beijar uma travesti e achá-la bonita, pensa como deve ser difícil para nós vivermos relacionamentos afetivos.

Boa parte de nós simplesmente acaba aceitando migalhas e embarcando em relacionamentos altamente tóxicos por pura carência, de tanta exclusão social. A gente é cria da mesma sociedade dos contos de fada e das novelas repletas de príncipes encantados que se apaixonam e assumem amar gatas borralheiras, não é mesmo? Como evitar essa solidão desesperadora num mundo como o nosso, no qual é preciso coragem e desconstrução para nos assumir, para nos tratar como gente? Isso acaba levando muitas a sublimarem esse lado de suas vidas e simplesmente reduzirem suas relações a trabalho sexual, só se envolvendo com alguém mediante dinheiro (mesmo homens por quem elas se atraiam).

Nesse turbilhão de sentimentos, é muito comum que algumas desenvolvam ódio por esses homens que só queiram sair com a gente no sigilo e, pior, pra práticas sexuais que boa parte das travestis abomina, mas faz por dinheiro e por necessidade de sobrevivência (eles chegam obcecados nos nossos genitais e loucos para serem escangalhados na cama, quando tudo o que a musa queria era um príncipe encantado que a tratasse como as princesas da Disney). Com esse ódio, um sentimento de vingança pode acabar surgindo também, daí acontecerem situações como essa.

Continua após a publicidade

Obviamente o que a travesti fez foi errado, mas espero que já tenhamos avançado em termos de civilização para contextualizar o caso nesse quadro mais amplo da transfobia que retira cotidianamente a nossa dignidade. Devíamos também nos perguntar: por que um vídeo como esse segue chamando atenção, segue viralizando? Aliás, por que a chantagem parece importar menos do que a exposição do jogador? Será por considerarem o jogador culpado, mesmo que aparentemente o crime cometido por ele tenha sido apenas "sair com uma travesti"?

Finalizo torcendo para que esse caso, independente do andamento que tiver, não seja usado para dar ainda mais força à transfobia profunda de nossa sociedade. Uma travesti errou, ótimo. Mas e nós, enquanto sociedade, por quanto tempo mais vamos tolerar os erros que têm podado a vida de tantas travestis?

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.