Topo

Olhar Olímpico

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Patinadora trans diz ter sofrido assédio e violência em 1ª vez na seleção

Colunista do UOL

31/03/2023 04h00

Esta era para ser uma história feliz, no Dia Internacional da Visibilidade Trans. Pela primeira vez, uma atleta transgênero representou o Brasil em competições internacionais, algo raríssimo no esporte em nível global. Mas Maria Joaquina Reikdal ainda carrega os traumas do que viveu na Itália. Episódios de assédio moral, violência e transfobia, segundo seu relato, tiraram dela a gana de buscar vaga na próxima Olimpíada de Inverno como atleta de patinação no gelo.

"Antigamente eu estava super motivada, queria ir para as Olimpíadas, queria me dedicar muito. Eu gosto [da patinação] no gelo, mas não é a mesma felicidade, igual eu tinha antes, por tudo que aconteceu na Itália, por tudo que eu passei", contou, ao UOL, a patinadora que anteontem (29) completou 15 anos.

Durante toda a entrevista, realizada no Parque Augusta, em São Paulo, Maria Joaquina não citou o nome da mulher que ela acusa de tê-la maltratado em uma viagem à Itália em maio: Cláudia Feital, vice-presidente e diretora de patinação da Confederação Brasileira de Desportos no Gelo (CBDG). Por orientação da advogada, a adolescente se referiu sempre à veterana por variantes de "a pessoa que me acompanhava".

Isso porque Cláudia processa judicialmente a família da patinadora por calúnia e difamação. A acusação surgiu como resposta às denúncias feitas pelos pais de Maria Joaquina junto ao COB e à CBDG, no fim do ano passado. Comentarista do SporTV nas últimas Olimpíadas de Inverno, Cláudia atendeu a reportagem em uma ligação por vídeo e rebateu, uma a uma, as acusações contra si. A CBDG, por sua vez, disse que não tem estrutura para avaliar o caso e também repassou ao COB, onde a denúncia está sendo investigada.

Precursora

Adotada aos 8 anos, junto de dois irmãos de sangue mais novos, Maria Joaquina tornou-se nacionalmente conhecida aos 11, quando seus pais adotivos, Cleber e Gustavo, entraram na Justiça para garantir o direito de a menina competir no Sul-Americano de Patinação sobre rodas. Ela já fazia acompanhamento psicológico para transicionar (mudar de gênero), mas ainda tinha documentos de menino.

"A transição sempre foi uma questão social, nunca foi esportiva. O esporte é uma das coisas presentes na vida dela", afirma Gustavo, que também é treinador da filha em uma escolinha de Curitiba (PR) e vem com ela a São Paulo para retirar o bloqueador hormonal fornecido pelo SUS mensalmente.

Em momento de perseguição contra atletas trans, que virou pauta prioritária para a direita em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, é importante citar que Maria Joaquina nunca teve puberdade masculina. Mesmo o "veto" da Federação Internacional de Atletismo, por exemplo, não se aplicaria a ela, que é elegível para competir no feminino. "Não entendo por que as pessoas têm de se preocupar tanto com isso. Não muda nada se é menino ou menina", disse a adolescente.

Para ela, o que mais dói ainda é o que deveria ser o mais fácil: frequentar um banheiro. "Eu me sinto muito desconfortável. Tipo no Brasileiro [de patinação inline]. Eu não queria ir ao banheiro trocar de roupa, porque as pessoas não paravam de olhar. Pedi para minha amiga entrar comigo, e mesmo assim não paravam de olhar, é desconfortável."

Ainda que passe tranquilamente por uma menina cisgênero, Maria Joaquina prefere que as pessoas saibam que ela é trans. "Eu não importo com o que eles falam de mim, não tenho essa vergonha."

Sonho olímpico

O Brasil participou das Olimpíadas de Inverno de 2014 e 2018 na patinação artística, mas a modalidade ainda é incipiente por aqui e dependia de Isadora Williams, nascida, criada e treinada nos Estados Unidos. Quando ela se aposentou, a CBDG passou a procurar alguém que pudesse ser lapidada para chegar aos Jogos de 2026, na Itália.

Maria Joaquina, melhor do país com patins de rodinhas, era a escolha óbvia, e foi a única a apresentar o nível técnico mínimo para ser convocada pela CBDG para um camping de 30 dias em Bergamo, na Itália, pago com recursos da área de desenvolvimento do COB. A viagem ocorreu em maio do ano passado e marcou o primeiro contato dela com um rinque de dimensões oficiais, que não existe no Brasil.

Maria Joaquina, atleta da patinação no gelo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria Joaquina, atleta da patinação no gelo
Imagem: Arquivo Pessoal

Cláudia foi indicada pela CBDG como "team leader" do projeto, e viajou à Itália como responsável pela menina. Cada uma recebeu R$ 10,8 mil para bancar transporte interno, hospedagem e alimentação. Como Maria Joaquina tinha apenas 14 anos, os pais dela transferiram o dinheiro para a conta pessoal de Cláudia, que deveria geri-lo.

Acusações

Abaixo, o UOL publica parte dos relatos de Maria Joaquina, com a defesa de Cláudia logo abaixo de cada acusação. As denúncias apresentadas pela família dela à CBDG são bem mais amplas. Segundo a confederação, envolvem: "problemas na prestação de contas, despreparo no trato da atleta por deixá-la sozinha em casa, não fiscalizar as obrigações escolares, abuso de poder, agressão física e discriminatória e problemas na alimentação".

"Toda vez que eu ia no restaurante, essa pessoa pedia água com gás, só que eu não gosto de água com gás e pedia água natural. E ela falava: 'Não: só tem essa água e você vai beber essa água. Já pedi essa e não vou pedir outra'. Era meio chato. Eu tinha que comer em um restaurante bem, tipo, desses restaurantes de esquina. Já essa pessoa ia em outro restaurante e comia entrada, prato principal e sobremesa. Ela falava: 'Não tenho dinheiro para ficar comprando o mesmo prato que eu como para você. O COB não dá dinheiro para pagar 20 euros de alimentação por dia'."

Cláudia nega e diz que em todas as vezes em que elas comeram em restaurante, Maria Joaquina pôde pedir a comida e a bebida que desejava. A vice-presidente afirma que o dinheiro era pouco e, sempre que comeu algo mais caro, pagou do próprio bolso.

"Eu não podia brincar. A pessoa ficava reclamando. Dizia: 'Isso não é postura de uma menina delicada. É postura de menino!'. Eu não sei se isso é um jeito de menino. Ficar correndo e pulando para ver se alcança a folha, isso é postura de menino? Para mim não é. Pode ser que eu esteja errada. Não gosto que ela ficava falando: 'Tem que ser mais delicada, tem que ser uma menina.'" Cláudia afirma que o episódio nunca aconteceu.

"Um dia que ela estava em Milão, eu fiquei até as 18h sem comer nada. Não tinha nada. Fui para a tia da cantina pedir pão para comer. Quando ela chegou, chegou gritando comigo. Ela me levou para uma sala, gritando comigo falando que eu não era boa, que eu era ruim, e nisso me empurrando, batendo no meu peito, me empurrando contra a parede. Ela disse bem assim: 'Só não te bato mais porque não sou sua mãe'." Cláudia diz que nunca "encostou" na patinadora ou em qualquer outra criança. "Nem nos meus filhos, e eu tratava ela como trato meus filhos".

"Teve um dia que a gente estava indo a pé para o ginásio e eu estava feliz e disse para ela: 'Acho que vai ser legal o treinamento, vou poder passar tudo para as rodinhas. Ela disse bem assim: 'Você não entendeu, Maria. Você não pode pôr patins no pé, senão você vai ter que voltar para o Brasil hoje, vai ter que devolver todo o dinheiro do COB'. Eu estava indo para o ginásio chorando. Chorando, de tão chateada que eu estava. Eu não podia mais nem pôr patins para tirar foto"

Cláudia nega que tenha respondido neste tom. Segundo ela, no contrato assinado pelos pais de Maria Joaquina, eles se comprometeram que a filha não treinaria com patins naquela temporada, para não prejudicar a preparação no gelo.

Sem punição

Após o camping, a menina voltou à Europa para participar de duas etapas do Junior Grand Prix, sendo a primeira brasileira a participar deste tipo de evento, no feminino, em mais de uma década — até então, o Brasil tinha vaga, mas não atletas para inscrever. Foi 33ª entre 34 atletas em Riga, na Letônia, e 39ª entre 44 em Egna, na Itália.

Na volta ao Brasil, depois de tomarem conhecimento dos relatos da filha, Cleber e Gustavo denunciaram o caso à CBDG, que em dezembro abriu processo administrativo. Em fevereiro, o advogado Felipe Ezabella apresentou relatório com 81 páginas, segundo a confederação. Alegando que o presidente da entidade não tem competência para julgar a questão e que a viagem era custeada pelo COB, o caso foi repassado há cerca de 50 dias ao Compliance Officer do COB.

Uma denúncia também foi apresentada por Maria Joaquina ao Comitê Olímpico do Brasil. Na mensagem, ela citou que havia sido agredida, ofendida, e diversas vezes deixada sozinha. Procurado pela reportagem, o comitê disse que a denúncia, apresentada em dezembro, segue com o Compliance Officer e não foi encaminhado ao Conselho de Ética. Afirmou ainda medidas protetivas podem ser aplicadas pelo Compliance quando existe risco iminente para a vítima, "o que não foi o caso, uma vez que a denúncia foi encaminhada aproximadamente dois meses após a viagem."

Desgosto

Frustrada, Maria Joaquina chegou a largar a patinação e se afastou, especialmente, dos treinos no gelo. Ficou meses sem ir ao CT da confederação, em São Paulo. Quando voltou, no domingo passado, deu de cara com Cláudia. "Meu coração tremeu e fiquei apavorada. Não queria entrar na pista e só entrei porque tinha uma amiga minha. Mas ninguém conversou comigo. Antes todo mundo dava abraço, vinha conversar, meu pai não gostava de tanto que eu conversava, porque atrapalhava meu treino. Agora não, ninguém falou comigo".

"Não sei o que ela disse para os outros. Eu me senti excluída. As pessoas não paravam de me olhar, ficavam me olhando como se eu fosse não sei o que. Não paravam de olhar para mim, e não falavam nada".

Maria se apega à soma de pequenos detalhes: a ausência de uma foto dela no painel que tem todos os outros atletas que representaram o Brasil na patinação artística nos últimos anos, e um 'unfollow' da conta do CT no Instagram, que a confederação diz ter sido um "erro de operação".

Procurada, a confederação diz que as portas seguem abertas para a patinadora e reforçou que está previsto, para o meio do ano, treinamentos com treinadores e orientadores internacionais e que isso já foi informado aos pais de Maria Joaquina. Diretora de patinação, Cláudia afirmou que os recursos da área de "desenvolvimento" serão destinados, este ano, aos atletas de modalidades que se classificaram para os Jogos Olímpicos de Juventude do ano que vem, mas que a patinadora com melhor índice técnico do país será levada a dois Grand Prix. Hoje, esse posto segue com Maria Joaquina.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Ao contrário do que foi publicado inicialmente, o caso já está em investigação no COB. A informação foi corrigida.