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Esporte rasga cartilha, toma lado na guerra e boicota Rússia

Bandeira russa próxima da embaixada americana em Moscou - Mladen Antonov/AFP
Bandeira russa próxima da embaixada americana em Moscou Imagem: Mladen Antonov/AFP

01/03/2022 04h00

O olimpismo é baseado em sete fundamentos. O sexto diz: "Toda e qualquer forma de discriminação relativamente a um país ou a uma pessoa com base na raça, religião, política, sexo ou outra é incompatível com a pertença ao Movimento Olímpico".

Ao longo dos anos, o Comitê Olímpico Internacional (COI) usa esse pilar, previsto na Carta Olímpica, para rejeitar qualquer tentativa de interferência de valores políticos no movimento olímpico. Tanto que COI se orgulha de tentar criar uma ponte entre Coreia do Sul e Coreia do Norte, países irmãos, que estão tecnicamente em guerra desde os anos 1950.

Por princípio, o COI não toma parte em conflitos, nem permite que eles sejam levados ao esporte. Um exemplo: países árabes que não reconhecem o estado de Israel e condenam os ataques à Palestina são punidos quando tentam boicotar atletas e equipes israelenses.

O próprio COI nunca cogitou punir Israel, muito menos os EUA, que invadiram o Iraque sob um pretexto, até hoje não comprovado, de que o país tinha armas de destruição em massa. A regra é: o que acontece no campo da política não interfere no campo de jogo. O esporte não toma lado.

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Mas toda essa cartilha está sendo rasgado durante o conflito militar entre Rússia e Ucrânia. Opiniões a respeito dele à parte, não há um consenso mundial sobre quem está certo e quem está errado, como nunca há em guerras. Cuba, Venezuela e Nicarágua, por exemplo, dão razão à Rússia. O Brasil é, nas palavras do presidente Jair Bolsonaro (PL), neutro.

Mas, liderado por países ocidentais, o esporte olímpico, em movimento inédito, tomou lado. Entre Rússia e Ucrânia, o esporte está contra os russos e disposto, ao que parece, a usar todas ferramentas que estiverem ao seu alcance para pressionar o presidente Vladimir Putin a recuar.

Trégua olímpica

Há um fator que permite ao COI tratar esse conflito armado de forma diferente da que tratou todos os outros nos últimos anos: a trégua olímpica. Existente desde os Jogos Olímpicos da antiguidade, nas últimas décadas a trégua se tornou uma resolução aprovada na ONU antes de cada Olimpíada.

A cada dois anos, quase todos os 193 países membros da ONU concordam em "garantir a passagem segura, acesso e participação de atletas, oficiais e todas as outras pessoas credenciadas que participam" de uma Olimpíada ou Paralimpíada. Coreia do Norte e Israel historicamente se abstêm.

Desta vez, outros 18 países, liderados por EUA, Austrália, Grã-Bretanha e Canadá, também boicotaram a aprovação da 'Trégua' na ONU, como crítica ao fato de a Olimpíada de Inverno ser realizada na China, que eles alegam desrespeitar os direitos humanos. Os russos, porém, assinaram a resolução, que estabelece a trégua em um período que começa sete dias antes da Olimpíada e termina sete dias depois da Paralimpíada.

A crítica do COI, e também do IPC, o Comitê Paralímpico Internacional, é que a Rússia está desrespeitando a trégua, que segue em vigor. Por causa do ataque armado, atletas da Ucrânia não deverão conseguir participar das Paralimpíadas, onde o país é potência — ficou em sexto em Tóquio. O torneio em Pequim começa na sexta.

Esta é, porém, a terceira vez, em 14 anos, que os russos dão de ombros para a trégua olímpica. Em 2008, invadiram a Geórgia durante o período de bloqueio pelos Jogos de Verão de Pequim. Em 2014, tomaram a Crimeia, região que pertencia à Ucrânia, durante o Olimpíada de Inverno de Sochi, na própria Rússia. Nas duas ocasiões, porém, Putin era forte parceiro do COI, e nenhuma sanção foi discutida.

Subterfúgio olímpico

Argumentando o desrespeito à trégua olímpica, o COI, poucas horas depois do início do ataque militar russo, pediu às federações esportivas internacionais que retirassem eventos da Rússia e da Belarus (aliada dos russos nessa guerra) e impedissem a exibição de bandeiras e a reprodução dos hinos desses dois países nas competições. Em resumo, que Rússia e Belarus deixassem de existir no esporte.

Para a Rússia seria apenas uma ampliação da punição já aplicada pela Agência Mundial Antidoping (Wada), por conta de um esquema de doping, e que não permitiu ao país competir como "Rússia" nas últimas Olimpíadas. A Fifa, que não estava aplicando a sanção, avisou que agora, enfim, iria cumprir.

Mas a postura do COI foi a deixa para uma escalada anti-Rússia dentro do esporte, nas mais diversas modalidades. No futebol, a Polônia, adversária dos russos nas Eliminatórias para a Copa, avisou que não joga de jeito nenhum, em nenhum lugar no mundo. Suécia e República Tcheca, contra quem a Rússia cruzaria se avançasse, disseram o mesmo.

Ao longo dos anos, o esporte sempre agiu para punir quem tem postura assim. No ano passado, a Federação Internacional de Judô (IJF) suspendeu por 10 anos um judoca da Argélia, muçulmano, que desistiu de participar da Olimpíada porque não queria enfrentar um rival de Israel como forma de apoio político à Palestina. O Irã também foi punido pela IJF, em 2019, por não dar garantia de que seus atletas lutariam contra israelenses.

Agora, a punição é aplicada ao país boicotado. Pressionada pelas declarações de diversas federações nacionais, a Fifa anunciou ontem (28) uma suspensão que tira a seleção da Rússia da Copa do Mundo que será realizada no Qatar.

Amplo boicote

O futebol, porém, não está sozinho no boicote, que escalou para níveis inéditos no esporte moderno após cinco dias de conflito. No vôlei, que segue mantendo a programação de realizar um Mundial Masculino em 11 cidades russas, em agosto, a França já anunciou que não joga lá de jeito nenhum. Polônia, Eslovênia e Holanda, entre outros países, se uniram aos franceses.

Astros como o brasileiro Bruninho, o francês Ngapeth, o italiano Zaytsev e o polonês Kubiak deixaram claro, nas redes sociais, que também não concordam com o torneio em solo russo. Sob pressão, a FIVB tirou da Rússia duas etapas da Liga das Nações que seriam em Ufa e Kemerovo. A Confederação Brasileira ficou em cima do muro: "A CBV espera que a paz se restabeleça o quanto antes e que os valores do esporte de respeito, amizade e solidariedade se estendam a todas as nações".

No fim de semana, atletas de esgrima da Ucrânia se recusaram a enfrentar a Rússia em um torneio disputado no Cairo, no Egito, e deixaram a área de competição aplaudidos. Paralelamente acontecia uma etapa de Copa do Mundo em Sochi, feminina, mas o torneio foi cancelado no último dia porque a maior parte dos atletas foi embora da Rússia após o ataque à Ucrânia. A Federação Internacional de Esgrima (FIE) é presidida pelo bilionário Alisher Usmanov, ex-dono do Arsenal e membro da oligarquia que sustenta o presidente russo Vladimir Putin.

Passo além

Em meio à pressão dos países ocidentais e da boa receptividade das primeiras sanções, o próprio COI já ampliou o boicote à dupla Rússia/Belarus. Nesta segunda-feira (28), o conselho executivo do comitê recomendou que atletas dos dois países sejam impedidos de participar de competições.

"A atual guerra na Ucrânia coloca o Movimento Olímpico em um dilema. Enquanto os atletas da Rússia e da Belarus podem continuar a participar de eventos esportivos, muitos atletas da Ucrânia estão impedidos de fazê-lo por causa do ataque ao seu país", explicou o órgão, antes de, "com dor no coração", anunciar:

"A fim de proteger a integridade das competições esportivas globais e para a segurança de todos os participantes, o conselho executivo do COI recomenda que as Federações Esportivas Internacionais e os organizadores de eventos esportivos não convidem ou permitam a participação de atletas e oficiais russos e bielo-russos."

Na resolução, o COI explica que entende que isso pode trazer dificuldades no curto prazo, para eventos que vão acontecer nos próximos dias, mas insiste que os organizadores façam o que estiverem ao alcance para impedir que russos e bielo-russos compitam como representantes de Rússia e Belarus. "Cidadãos russos ou bielo-rrussos, seja como indivíduos ou equipes, devem ser aceitos apenas como atletas neutros ou equipes neutras", disse o COI.

Após o pedido do comitê olímpico internacional, a Federação Internacional de Hóquei anunciou suspensão de seleções e times da Rússia, nas mesmas bases da medida adotada pela Fifa, do futebol. A ITF, do tênis, não se pronunciou. Ontem, o russo Daniil Medvedev assumiu a liderança do ranking mundial masculino.