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Brasil perde destaque da Rio-2016 para Portugal: "Era peixe fora d'água"

João Vitor Oliveira agora é português - Divulgação
João Vitor Oliveira agora é português Imagem: Divulgação

12/10/2020 04h00

Um dos destaques do atletismo brasileiro na Olimpíada do Rio quer ir a Tóquio defendendo outra bandeira. João Vitor Oliveira, o João da Barreira, teve aprovada a mudança de nacionalidade esportiva pela World Athletics (IAAF) e, a partir de 21 de dezembro, irá representar Portugal. Ele busca índice para os Jogos Olímpicos de Tóquio nos 100m com barreiras e já está convocado para defender Portugal no Europeu Indoor do ano que vem.

Naturalizações desse tipo têm sido comuns no atletismo — Portugal conta com um dos principais triplistas do mundo, Pedro Pablo Pichardo, nascido em Cuba —, e não são raras entre atletas que, pelo Brasil, teriam chance reduzidas de ir à Olimpíada, por causa da concorrência. Mas caso de João da Barreira raro no país e inédito no atletismo. Até hoje, de acordo com pesquisa de doutorado de William Douglas de Almeida, do Grupo de Estudos Olímpicos da USP (GEO-USP), só quatro atletas brasileiros disputaram uma Olimpíada primeiro pelo Brasil e, depois, por outro país: Luciana Diniz, do hipismo, Carolina Mendelblatt, da vela, Darly do handebol e Gabrielle Rose. As duas primeiras passaram a defender Portugal.

O barreirista surpreendeu ao conquistar vaga para disputar o Mundial de 2015, depois de vender tudo que tinha e se mudar para San Diego, nos Estados Unidos, onde Zequinha Barbosa lhe abriu as portas e se ofereceu para ser seu treinador. Depois de chegar à semifinal no Mundial nos 110m com barreiras, fez uma vaquinha para ir à Europa competir e, lá, conseguiu também vaga no time olímpico. Na Rio-2016, repetiu a semifinal e o gesto que virou marca registrada: cruzar a linha de chegada com um mergulho.

João conta que esperava que, depois de conquistar o que conquistou sem ajuda do governo ou da confederação (não tinha bolsa, nem direito a camping internacional), seria reconhecido. Não foi. Transferiu-se para o Benfica ainda em 2017, sagrando-se diversas vezes campeão nacional, e ficou aguardando o convite para se naturalizar.

"Até então ninguém no Brasil imaginava que seria possível essa possibilidade, de competir por um clube da Europa, sendo brasileiro. Foi numa passagem minha por Portugal que me fizeram uma proposta. Pedi dispensa do Pinheiros e vim para recomeçar a vida. Eu sofri internamente para caramba. Quando saí de São Bernardo (junho de 2014), fiquei 18 meses sem clube. Fui para o Mundial, fui semifinalista, fiz o índice olímpico, e não achei que ia ficar rico, mas eu pensava que ia ter dignidade de atleta. Não tive, então toquei a vida", conta.

Quando chegou o convite do Benfica, ele estava empregado no Pinheiros e era patrocinado pela Asics. Mas não estava feliz. "Internamente eu sofri muito. Eu flertei com a depressão. Eu senti muito o baque de ser um peixe fora d'água, de ser um cara progressista. Comecei a perceber que os caras me olhavam e pensavam: 'esse cara é bom, mas é bom para estar longe'. Diziam que eu era o próximo Jadel", conta, citando o polêmico triplista, que também saiu de Marília, passou por São Diego e causou polêmica confrontando dirigentes.

Para João, o atletismo brasileiro parou nos anos 1960. "Se você for conversar com os mais velhos, com o Zequinha, com o Joaquim, não mudou nada. Mudou sapatilha, roupa, mas o modus operante é o mesmo. Eu dei o peixinho (na linha de chegada) e diziam que isso ia estragar minha imagem, que eu não ia ganhar nada com isso. Mas, veja só, foi isso que me alavancou para eu estar aqui. A diretora do Benfica me reconheceu porque me viu correndo no Rio e lembrou do peixinho".

O início no Benfica foi péssimo. João chegou em um dia e, na manhã do dia seguinte, recebeu uma ligação de que o pai estava na UTI. Voltou o primeiro avião e ficou um mês ao lado do pai, que não resistiu e faleceu. O barreirista enterrou o pai e, mesmo liberado pelo Benfica, voltou a Portugal no dia seguinte. "O ano de 2018 foi um ano que eu passei seis meses dormindo 4h. Eu não estava 100%, meu foco era manter minha saúde mental. Meu pai era um super pai, minha família caiu aos pedaços e a gente começou a se reconstruir", ele lembra.

Sem conseguir se dedicar ao atletismo da forma que queria, João não conseguiu índice para defender o Brasil em nenhuma competição desde a Olimpíada. E se conseguisse, não iria. Estava decidido a não mais ter que lidar com os dirigentes da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e esperar por um convite que veio em março de 2019: naturalizar-se português. Como havia tempo que ele não competia pelo Brasil, não precisaria cumprir quarentena.

De tão desconectado com o Brasil, João sequer pediu ao governo brasileiro a Bolsa Atleta "olímpica", de quase R$ 3 mil, a que teria direito desde 2017. Abriu mão de mais de R$ 100 mil, mesmo cumprindo todos os requisitos formais. "Meu coração já era português", ele explica.

Curiosamente, a máxima não vale para a esposa, Tamiris de Liz, velocista de 24 anos que também defende o Benfica e mora em Lisboa. Convidada a se naturalizar por Portugal, ela nem chegou a cogitar a ideia, segundo João. "Ela disse que se sente 100% brasileira e que tem o sonho de ir à Olimpíada pelo Brasil".

João fez 13s54 como melhor marca nos 110m com barreiras no ano passado, o que o deixaria empatado em quarto lugar no ranking nacional. Além de João, Portugal também naturalizou o brasileiro Eberson Matucari Silva, medalhista de bronze no Mundial de Menores de 2015 no salto em distância.

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