Milly Lacombe

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A beleza escondida nas palavras enigmáticas de Abel Ferreira

Abel Ferreira disse, depois do jogo contra o Cuiabá, que adoraria poder treinar os garotos Endrick, Luis Guilherme e Estevão. Insira aqui o meme da Renata Sorrah fazendo cálculos porque Abel já treina esses três futuros craques. O que quis, então, dizer Abel? Eis aí é a pergunta que todos estão se fazendo nessa segunda-feira.

Por que tanta repercussão diante de uma colocação aparentemente corriqueira? Porque Abel movimenta medo.

Em palmeirenses, o medo de perder seu grande ídolo: o treinador.

Nos rivais, o medo de mais domínio, títulos, competitividade. Como sabemos, onde há medo, há esperança, claro. No caso dos "anti", a esperança é a de ver o Palmeiras perder seu grande ídolo.

Por tudo isso, as palavras de Abel repercutiram. Será que o treinador teria cometido um ato falho? Teria dado um recado sobre seleção brasileira? Estaria falando de seus desejos profissionais mais secretos?

Eu queria aqui fazer a minha interpretação do que disse Abel porque não acho que seja nada disso. Vamos lá.

Abel já considera que Endrick não é mais do Palmeiras; faltam poucas semanas para o garoto ir para as touradas de Madri. E Abel sabe que, no ritmo que o Brasil vende seus craques, vai perder Luis Guilherme e Estevão em breve. Então, Abel se mandou para o futuro e se permitiu imaginar um possível reencontro.

Outra coisa: Abel também sabe que os três futuros craques são, hoje, adolescentes. Estão se forjando como homens, mas ainda não chegaram lá e, por isso, Abel tem tido o maior cuidado na utilização e formação deles. Assim, o treinador não pode usar os garotos como talvez quisesse usar se já estivessem graduados na vida adulta. Imagino que o treinador tenha, portanto, antecipado uma possibilidade de futuro dentro do qual eles se reencontrem já como homens.

Foi um momento em que Abel tirou um pouco o sapato do líder para se imaginar lado a lado com as versões maduras dos três jogadores. Foi, também, uma declaração resignada e bastante triste a respeito da realidade do nosso futebol, que aceita perder seus jovens talentos como se esse fosse o destino natural da vida: ir para a Europa.

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Abel, ele mesmo, fez o caminho contrário para se desenvolver como profissional e pessoa. Mesmo inconscientemente existe nele essa verdade a respeito das rotas, desse ir e vir, desse olhar estrangeiro sobre a qualidade das nossas bases e a forma melancólica de como aceitamos perder talentos.

Arrisco dizer que a declaração de Abel foi uma surpresa também para ele. De um jeito lacaniano, as palavras saíram sem pedir licença e revelaram até para o próprio treinador um tipo de respeito, de amor e de tristeza que ele, de forma racional, ainda não tinha colocado lado-a-lado ao falar de Brasil, de jovens craques, de situações tristes e de, uma palavra tão nossa, saudade. Ao dizer o que disse na coletiva, Abel revelou um tipo especialmente sofrido de saudade: a saudade das coisas que talvez não possamos experimentar. Não era, portanto, sobre ele, sobre Estevão, sobre Luis Guilherme ou sobre Endrick; era sobre todas e todos nós.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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