Julián Fuks

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Opinião

Sobre a forma exata das palavras, onde talvez more sua beleza

Vivo em descompasso com meu tempo. Uma declaração como essa poderia se completar com todo tipo de contravenções e antinomias, mas hoje me refiro a uma coisa mesquinha, irrelevante, a uma dessas implicâncias bestas que tão bem nos definem. Tenho uma atenção obstinada à grafia das palavras, e sofro com o descaso que vai se alastrando por aí, em quase toda escrita. Sinto que cada palavra forma um desenho na página, um desenho incompleto se lhe usurpam uma letra, um desenho disforme se lhe agregam um desatino. Como se um mero deslize do dedo pudesse turvar toda a mensagem, deslocando o foco em direção à falha, àquilo que jamais o mereceria.

Acabo de assistir a uma série um tanto tola sobre uma mulher que acossa um homem com insistência doentia, com grande violência, inclusive mandando-lhe centenas de mensagens obscenas e hostis num só dia. Minha sensação era de que nunca poderia me relacionar com alguém assim, não por sua insanidade, sua psicopatia. O que eu não conseguiria relevar numa mulher como ela seria a sintaxe absurda e a infinidade de erros ortográficos a me atingir a cada instante. Quando me dei conta disso, da aflição menor que até superava as aflições maiores, temi que a loucura pudesse estar em mim.

Vivo em descompasso com meu tempo, é o que digo, na contramão da pressa e da displicência, do desleixo escancarado, ou de um jovial descompromisso. Por um tempo pensei que me sentisse assim por ser escritor, por ver nas palavras meu instrumento de trabalho, por confiar a elas o sentido da minha existência, ou, se não tanto, ao menos o meu sustento. Mas fui me deparando com uns quantos exemplos de escritores distraídos, escritores admiráveis e no entanto desleixados, conformados com a imprecisão das frases que propagam por aí.

Li com aflição uma crônica de Lima Barreto em que ele conta de sua letra sofrível, indecifrável, e dos embaraços que lhe cria quando envia aos jornais seus manuscritos. A letra é sua inimiga, é a traição em suas próprias mãos, "esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e a apoucada inteligência", ele se martiriza. Sofre, sim, diz que lê seus textos no dia seguinte com vontade de chorar, de matar, de suicidar-se. Pensa até em se casar para resolver o problema, e se apaixona por uma jovem apenas por sua cursiva irrepreensível. Mas nada faz de fato, aceita sua sina. Nem sequer passa a escrever na máquina, por julgar cansativo, por querer fugir ao trabalho de escrever à mão e passar a limpo. Aí já não me compadeço, passo a sofrer sozinho.

Lendo isso, lembro dos primeiros romancistas, os primeiros profissionais das letras que de fato vendiam seus livros, que não viviam de mecenato. Diz-se que eram longos os primeiros romances, como os de Defoe e seus conterrâneos, porque seus autores recebiam por quantidade e acabavam sendo rentáveis os detalhes a esmo, as páginas prescindíveis. Conta-se que entregavam os manuscritos ainda talhados de incorreções, e que cobravam mais caro caso os editores quisessem originais reescritos e revisados. Eu ouço essas histórias e sinto que não pertenço à mesma linhagem, procuro outra tradição a que possa me vincular, uma corrente de romancistas preocupados com as minúcias da linguagem. E, no entanto, sei bem que jamais escreverei uma frase que perdure como a desses sujeitos, e aceito o meu limite.

Lembro também de Clarice Lispector, lembro de seu bilhete ao linotipista que ela acabou publicando em forma de crônica. Nele, Clarice pede desculpas pelos erros que comete na máquina, diz que erra porque escreve com a mão queimada, mas também por outra razão que ela não sabe explicar. O que lhe pede é que não a corrija, que aguente suas vírgulas, que aceite a forma esquisita de sua escrita, a respiração de suas frases. Clarice é elegante, não quer repreender o linotipista. Chama de erros as suas escolhas autorais, diz que ela própria tem aprendido a se respeitar. Entre as correntes literárias que eu considerava, não sei ao certo em qual devo elencá-la.

Não sei também aonde vou com esta reflexão tão dispensável. Talvez deseje apenas me descobrir na companhia de alguém, como costuma ser quando se escreve algo e não se guarda para si. Acho que propago estas anotações insensatas para que alguém apareça e me diga: você não está louco, você não está só. E diga: eu sinto o mesmo, também vivo em descompasso com meu tempo, também eu vasculho obsessivamente cada verbete, sem exceção, à espreita do s ou do c que sobre ou falte. E diga: também eu contemplo a curva exata das palavras, onde talvez more sua beleza, onde talvez seu sentido se veja relampejar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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