Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A grande responsável pela conquista da Copa do Mundo

Outro dia escutei a palavra de Ailton Krenak, uma das mais interessantes lideranças dos movimentos indígenas, e ele dizia uma coisa mais ou menos assim: se minha mãe morre ela segue existindo em mim. As coisas não morrem, elas se transformam. A borboleta não sabe que um dia foi lagarta, mas a lagarta está nela. É assim esse mundo.

Fiquei pensando no que dizia Krenak. A ideia que ele colocou em circulação ficou comigo até que, horas depois, eu soube que o Brasil havia sido nomeado sede da Copa do Mundo Feminina de 2027. E então, como normalmente acontece, tudo fez sentido.

O nome das mulheres responsáveis por vencer essa disputa na FIFA começou a ser noticiado. Valesca Araújo, Jacqueline Barros, Manuela Biz, as consultoras do processo e da candidatura brasileira, Aline Pellegrino, gerente de Competições da CBF, e também o presidente Edinaldo Rodrigues, sem dúvida, de todos os presidentes da Confederação, o que mais faz pelo futebol feminino.

Temos ainda a ministra do esporte, Ana Moser, que foi peça importante nessa batalha antes de ser vexatoriamente afastada por Lula a fim de acomodar mais um nome do dito "centrão" que de centrão não tem nada; é apenas "direitão" ou, mais adequadamente, "extremo-direitão".

Mas chutemos o fisiologismo para o raio que o parta a fim de não perdermos o ritmo aqui.

Esses nomes são aqueles que estão sendo fartamente celebrados. E com razão: fizeram história. Mas eles não são os principais responsáveis.

Eu colocaria essa vitória muito na conta da resistência das primeiras mulheres que pegaram uma bola e entraram em um campo, mesmo xingadas, mesmo ridicularizadas. As mulheres que apanharam da policia apenas por estarem jogando bola num país que resolveu proibir que mulheres jogassem mesmo que por recreação. Mulheres que corriam não apenas atrás da bola mas também dos porretes. Mulheres periféricas em sua maior parte. Mulheres negras em sua maior parte. Mulheres guerreiras em sua totalidade.

Sissi, nossa primeira fora-de-série, a mulher que raspou o cabelo quando começou a escutar o discurso protocolar dos dirigentes da época - muitos dos quais ainda atuam hoje - dizendo que "pra vestir a camisa da seleção tinha que ser bonita e parecer mulher". Formiga, que estava com a delegação da CBF no momento do anuncio, essa instituição em forma de pessoa. As mulheres que tiveram que interromper seus sonhos de ser profissional porque esse não era um sonho permitido. As mulheres que já foram arrancadas dos jogos e, mesmo assim, voltaram no dia seguinte. As mulheres que lutaram, lutaram e lutaram mesmo quando tudo ao redor delas as mandava calar.

Coloquem nessa conta as jornalistas esportivas, ainda hoje tão diminuídas dentro de suas próprias redações, mas que seguem fazendo o seu trabalho mesmo diante de tanto xingamento, de tanta opressão, de tanta violência que vêm de todos os lados. Mulheres que muitas vezes se sentem sozinhas e desamparadas, que sabem que ganham muito menos do que seus colegas de bancada, que quase todos os dias pensam em desistir, mas que encontram forças para seguir porque sentem que estão fazendo isso por milhões de outras e não apenas por elas mesmas.

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É por isso que o futebol feminino conquistou a Copa em território nacional. É uma conquista de gerações. Uma conquista dessa rede potente que se constrói como o ato de mulherar, e que, uma vez traçada, produz um tipo de tecido que não se rompe mais. Então, a todas as que antes de nós enxergaram que o impossível era o lugar para onde deveríamos caminhar juntas, meu sentimento de respeito, admiração e gratidão. A Copa do Mundo Feminina é nossa. E vai ser demais.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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