Milly Lacombe

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Estupros em abrigos no sul: o pesadelo dentro do pesadelo

Os relatos de estupros crescem no interior da tragédia no sul do Brasil. São, na maioria, estupros em crianças praticados por pessoas conhecidas. O horror dentro do horror, dizem muitos, movidos pela honesta repulsa que a notícia traz. Eu pediria três minutos da sua atenção para dizer o que deveria ser óbvio mas ainda não é: essas crianças que estão sendo estupradas em abrigos estariam passando por isso dentro de suas casas. Compreendem do que estamos falando?

Não são monstros que nasceram com a inundação. É uma sociedade monstruosa que estupra a cada oito minutos. Uma sociedade que diz que a imensa maioria das vítimas é feita de crianças e adolescentes, que a imensa maioria dos criminosos é feita de gente conhecida e que a imensa maioria dos crimes acontecem dentro das casas dessas crianças.

Estupro não vem como oportunidade; estupro vem como cultura. É prática cotidiana. Todas, todas, todas, todas - todas - nós passamos por coisas assim. Todas nós.

É o pai da amiguinha que nos sexualiza, é o professor que nos sexualiza, é o padre que nos sexualiza, é o pastor que nos sexualiza, é o dono da quitanda, o dono da loja, o motorista do ônibus, o trabalhador no metrô, o cara na barraca da feira, o irmão da mãe, o amigo do pai e, para acrescentar uma dimensão de pavor, são também, muitas vezes, os pais. Não há recorte de classe aqui: essa sexualização precoce vem de todos os cantos e de todos os ambientes.

Essa é a realidade da vida de todas as meninas e da de alguns meninos. A cultura heterossexual masculina é forjada na naturalização da pedofilia. Basta pensar no clássico pornográfico da estudante de saias quadriculadas e cadernos colados ao peito. Uma imagem considerada absolutamente normal. Sexualizem aí crianças e adolescentes, tudo bem. Depois, quando soubermos de crimes, vamos berrar indignados. Somos sempre a Lolita de alguém.

Diante no noticiário, tem machão que acha ok chamar mulher de puta avisando que vai armado para o sul acabar com esse estado deplorável de coisas. Seria muito mais digno que aqueles que se enxergam inundados de testosterona observassem o comportamento deles próprios em relação a mulheres em vez de sair por aí tratando de um assunto epidêmico como se fosse esporádico e achando que vão, eles, os vingadores, resolver a parada na bala. Olhem para o monstro do espelho antes de pegarem seus trabucos.

Governos precisam agir para criar abrigos só para mulheres. E seria preciso identificar, dentro da tragédia, como a violência de gênero atua: haverá estupros, assédios, abusos, tapas, socos, pontapés; está tudo ali. A vida real saiu do domínio privado para o público.

Podemos seguir fingindo que os estupradores de abrigo são pontos fora da curva, monstros destacados da sociedade que nasceram com a tempestade. Mas isso apenas manterá suas filhas, sobrinhas, irmãs e amigas em risco. O que estamos vendo acontecer em abrigos é o cotidiano de meninas nesse país.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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