Milly Lacombe

Milly Lacombe

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
OpiniãoEsporte

Gabigol não soube usar a 10 do Flamengo

Gabriel acaba de sair de uma crise gerada por ele mesmo e que envolveu mau comportamento durante coleta de exame antidoping. Foi afastado, conseguiu efeito suspensivo, voltou, a torcida o acolheu em festa comovente no Maracanã. Isso não faz um mês e lá vai Gabriel lidar com outra treta. Agora, flagrado usando a camisa do Corinthians durante uma festa em sua casa.

A equipe do atacante diz que é montagem. Não tem pinta nenhuma de montagem, mas o que sei eu sobre montagens? Tudo o que sei envolve Gabriel e seu comportamento depois de virar ídolo da maior torcida do Brasil.

Gabriel virou ídolo com as conquistas da Libertadores e do Brasileirão. Mais pontualmente, com o milagre operado no Monumental contra o River. Podemos apenas imaginar o que é adquirir esse nível de idolatria vestindo a camisa do Flamengo. Dificilmente ficaríamos imunes a tanta badalação. O fato é que Gabriel não está sabendo surfar essa onda e parece despencar de um abismo há pelo menos três anos. Mais grave: ele não se percebe caindo, ele se enxerga voando.

Pelos serviços prestados, ganhou o sagrado direito de usar a camisa 10 que um dia foi de Zico. E minha humilde teoria é a de que foi nesse dia que tudo desandou - teoria já muitas vezes exposta nos programas desta casa.

Não se entrega a 10 do Flamengo assim impunemente. Símbolos importam. A camisa deveria estar, aliás, aposentada. O Flamengo agora avisa que, diante da imagem vazada, Gabigol vai perder a 10 nas competições em que a numeração puder ser alterada.

Seja como for, Gabriel não teve envergadura para usar a 10. Se perdeu em campo, recuando como se fosse um meia, ficando numa zona sem vida e sem desejo. Se perdeu fora de campo, deixando de cuidar do físico como um atleta profissional.

Gabriel demonstra estar fora de forma e suas atuações reforçam isso. Sem tempo de bola, sem ritmo, sem pontaria. Há bastante tempo, aliás. Desde que virou ídolo da nação, ele já foi visto publicamente mandando Tite, então treinador da seleção, para aquele lugar, já fez pirraça com a condição de reserva, já deu festão logo depois de eliminação e já se igualou a Zico em uma publicação ególatra nas redes sociais.

Fora de campo, vestiu a fantasia da celebridade e, neymarizadamente, talvez acredite que só ele é malandro e somos todos manés.

Nessa semana, antes da foto vazar, Gabigol publicou um vídeo enigmático em suas redes sociais onde vemos imagens de bonecos que fazem o gesto com os braços com o qual assina seus gols, uma edição da Bíblia e uma cruz. Seria interessante saber que tipo de leitura ele fez do livro sagrado, um livro que, a depender de como for interpretado, pode trazer mensagens de amor e de paz ou de guerra e de sangue.

Continua após a publicidade

Talvez pareça bobagem esse escândalo só por ter sido flagrado vestindo a camisa de um rival, mas eu argumentaria que, dado o contexto aqui colocado, está longe de ser.

Zico vestiu a camisa do Vasco em circunstâncias completamente distintas e, com o gesto, promoveu mensagem de paz, respeito e admiração - o que seriam os sentimentos naturais de nutrirmos pelos rivais dentro de uma sociedade saudável. Zico queria homenagear Roberto Dinamite, rival e colega. Tem coisa mais bonita? Se tem, desconheço. Mas a fase de Zico era outra, Zico nunca desrespeitou as cores do Flamengo, Zico era atleta mais do que celebridade, Zico é incontestável como fora de série.

Adriano, o Imperador, jogou no Corinthians, foi responsável direto pela arrancada para um título nacional e até hoje é ídolo do Flamengo, clube do seu coração.

Não vejo problema em atletas de um time vestirem outras camisas, mas tudo na vida é contexto.

Fazer isso me nome da paz no futebol é bacana. Paulinho, atacante do Galo, revelou recentemente que era torcedor do Fluminense e que estava no Maracanã na final da Libertadores de 2008. Paulinho é ídolo do Vasco e, agora, do Atlético. Paulinho nunca desrespeitou as camisas que veste, em campo se entrega como só os ídolos fazem, é craque e segue sendo amado pela torcida do Galo.

Se Gabigol estivesse jogando, e jogando bem, o barulho com a imagem não seria ensurdecedor e ele poderia se sair dessa com uma declaração simples do tipo: Eu amo o Flamengo, o Flamengo é minha casa e minha pele, mas eu respeito o Corinthians, ganhei a camisa que achei linda e vesti numa festa em casa. Segue o jogo, pessoal.

Continua após a publicidade

É uma pena que esse estado de espírito da celebridade que está acima do bem e do mal esteja infectando o futebol. Jogadores precisariam entender que, por mais que sejam amados, nunca serão maiores do que o manto que vestem. Uma lição que Cassio está tendo da forma mais dolorida do mundo.

Somos encorajados a nos ver como se nós mesmos fôssemos uma empresa. Somos encorajados a calcular tudo no custo benefício. A enxergar todas as relações de forma contratualizadas. É nesse rimo que existem aqueles que acreditam ser maiores do que os clubes. É isso o que chamo de processo de neymarização: só eu e meus interesses importam. O resto, que se dane. Gabigol está na corda bamba, e sem sombrinha. O que ele percebe por voo se chama queda e Gabriel talvez só compreenda isso quando for tarde demais.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes