Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Como falar de futebol quando o mundo parece estar acabando?

Uma amiga me pergunta se estamos diante do fim do mundo e eu respondo que estamos diante do fim de um mundo.

Mundos acabam. Muitos já acabaram antes. As populações originárias dessa nação sabem disso. O mundo delas acabou em 1500. Mundos acabam e novas formas de vida nascem.

Imaginemos o pior cenário sob o ponto de vista da espécie humana: a gente consegue a façanha de nos autoextinguir. Baixamos nossas próprias cortinas. Uma espécie que se julga mais inteligente do que todas as outras. Estão de parabéns. Conseguimos. Palmas. O juiz apita o fim do último jogo. Perdeu para sempre, playboy.

O que acontece no minuto seguinte com os demais seres desse planeta tão lindo quanto improvável? Eles florescem. Ele se fortalecem. As árvores vivem em paz, as florestas, os rios, os peixes, os animais - todos respiram.

Feche os olhos e imagine esse planeta sem a gente. Sem nosso potencial destrutivo. Até espécies companheiras, como os cachorros, darão um jeito de sobreviver, talvez se reencontrando com seus ancestrais, os lobos.

Mundos acabam. E acho que qualquer pessoa minimamente sã compreende que estamos diante do fim de um mundo.

O calor extremo numa ponta e o frio extremo na outra - todos fora de hora. Chuvas nunca antes medidas, inundações, queimadas, secas sufocantes, refugiados climáticos bem diante de nossos olhos. Surpresa? Só para quem não estava atento.

Sabia-se que o mundo acabaria assim há pelo menos 40 anos. Está em relatórios, em apelos, em avisos. Tudo descrito tim-tim por tim-tim conforme estamos vendo acontecer. Não falaram de cavalos no telhado, o que apenas prova que a realidade supera qualquer previsão distópica. Eram os profetas cientistas.

O noticiário não se interessou em manchetar nada disso antes de as previsões se tornarem muito concretas e um estado inteiro submergir. Faz 40 anos que tem gente berrando que vai dar ruim. Mas dane-se. Não gera audiência. E o Agro não gosta desse tipo de alarmismo.

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Mesmo agora, com tudo desmoronando, quem assiste ao Jornal Nacional fica com a impressão de que foi mesmo obra de Deus a calamidade no Sul. Não tem culpados; tem apenas o registro factual da calamidade: dados, fatos, números, histórias de pessoas afetadas e o governador bonitão com coletinho da defesa civil e mangas arregaçadas para dar a ideia de que ele está trabalhando. Gestor. Homem de negócios. A cara branca e europeia do Brasil que queremos.

Na TV não tem menção ao estrago causado pelo Agro, não tem citação aos males causados pela monocultura, não tem notícia sobre cientistas avisando há 40 anos como o fim do mundo se daria, não tem alguém pra achar o relatório cheio de detalhes sobre o fim do mundo feito por cientistas renomados durante o governo Dilma e em seguida engavetado numa gaveta secreta de fundo falso.

Não tem a tal da autocrítica que tanto exigimos dos outros. Cadê a íntegra desse documento, meu povo? Não importa, olha o governador pedindo para sua equipe filmar a chamada de vídeo que ele vai fazer para agradecer a doação de dinheiro público feita pelos ruralistas. Filma a filmagem aí e coloca no ar que o Bonner vai comentar por gentileza. Elon, meu dengo, valeu pelas antenas.

Vamos parar o Campeonato Brasileiro, pedem muitos. A CBF, em vez de decidir ela mesma já que tem poder para tanto, confunde. Os clubes decidem, diz a confederação sabendo perfeitamente que não haverá consenso e que, sem consenso, segue o jogo. Vocês que lutem aí no Sul. Já pensou o trabalho que vai dar refazer essa tabela e acalmar os patrocinadores? Chama o estagiário. Faz uma bet aí que a odd tá boa: você acha que o mundo acaba quando?

Deveríamos ter parado o campeonato? Sim, faz muitos dias. Por quê? Porque seria uma maneira de chamar a atenção para a gravidade do que estamos passando. É grave, galera. E amanhã seremos nós. O mundo está acabando e a CBF virou a orquestra do Titanic, tocando enquanto o navio afunda.

Toquem, toquem.

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O Fluminense perdeu. Triste. O Corinthians ganhou. Alegria. Mas isso importa diante das cenas que chegam do Rio Grande do Sul? Por que não estamos falando sobre o fim do nosso mundo nos cadernos de esporte? Sobre o que caminha para ser o fim de qualquer possibilidade de vida decente nesse planeta? Sobre o cavalo no telhado. O cavalo no terceiro andar. O rapaz navegando usando uma geladeira como embarcação pelas ruas que viraram canais no centro de Porto Alegre.

Haverá sinais.

O campeonato já deveria ter sido interrompido, mas não foi e talvez agora seja tarde. Então, que a CBF estivesse mobilizada para avisar esse imenso contingente que ela hoje chama de clientes - nós, os torcedores e as torcedoras - sobre o fim do mundo.

É o seguinte, ela deveria dizer: precisamos reflorestar esse Brasil. Precisamos parar de construir na beira de rios, precisamos dar um basta à especulação imobiliária, precisamos consumir menos, precisamos plantar e parar de concretar. Não vai ter rodada e nossos confederados, durante o próximo domingo, vão plantar árvores. Vamos plantar tantas quanto conseguirmos. Vai ser histórico. Vamos sair plantando feito malucos.

Do que adianta plantar? Se o mundo está acabando, vou plantar a porra duma árvore pra quê?

Adianta, meus amigos, como simbologia - e símbolos importam, o futebol deveria saber disso mais do que ninguém.

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Mas verdade: pensar no fim do mundo não mobiliza mesmo. Se vai acabar, então vou simplesmente queimar uma gasolina e acelerar meu carrão rumo ao abismo. Diante do que estamos sabendo, como não dar esse jogo por perdido? E aí entra o futebol para nos salvar porque se tem uma lição que ele ensina é que sempre podemos fazer alguma coisa e que nenhum jogo jamais foi perdido ou vencido antes da hora. Seria importante que a gente entendesse que outros mundos já acabaram antes. O mundo que precisa agora acabar é o do consumismo sem fim. O do desmatamento. O das queimadas. O dos arranha-céus em balneário do Camboriú. O da lógica empresarial infectando todos os aspectos de nossa vida, incluindo o futebol (tchau, SAFs). O da monocultura de todas as coisas - de grãos a afetos. Precisamos virar esse jogo e a hora é agora. O futebol pode ser meio dada sua imensa capacidade de mobilização de alcance nacional. Vou torcer pelo Corinthians, pelo Fluminense e para que acordemos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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