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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que minha mãe me ensina sobre a vida

Idoso, velhice, terceira idade, bengala - Carine Wallauer/UOL
Idoso, velhice, terceira idade, bengala Imagem: Carine Wallauer/UOL

Colunista do UOL

14/05/2023 13h50

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Faz algumas semanas, fui visitar minha mãe no fim do dia.

Cheguei e entrei com a chave que ela me deu. Berrei: "Mãe, cheguei!" e nada de resposta.

Como ela mora sozinha e tem 86 anos, minha primeira reação foi pensar no pior.

Berrei de novo, agora mais forte porque a audição dela é compatível com a de uma pessoa de quase nove décadas, ainda que ela jure que nossa dicção que está cada dia pior: "Vocês falam pra dentro!", repete sem sequer ficar vermelha.

"Mãe, cheguei!", uivei agora.

Nada.

Vi que a luz do quarto dela estava acesa e a porta fechada.

Fui me aproximando lentamente, agora com a certeza do pior, quando ouvi uma música.

Abri a porta do quarto e notei que a música vinha do banheiro.

Minha mãe estava no banho ouvindo música e cantando junto.

Era uma canção italiana, dessas clássicas, que eu cresci vendo ela escutar.

O que eu nunca tinha visto era minha mãe cantar.

Sentei no pé de sua cama e fiquei ali testemunhando o evento.

Pensei em por que só agora eu a ouvia cantar.

Lembrei de como ela criou quatro filhos e um marido.

Escrevo criou um marido porque ela lavava, cozinhava, passava e arrumava a casa para nós cinco.

Ninguém ali fazia muita coisa.

Era ela e uma trabalhadora doméstica porque cresci nesse contexto de privilégios e explorações institucionalizadas.

Não havia, imagino, tempo ou disposição para cantarolar no chuveiro.

Nem para ela e muito menos para a trabalhadora doméstica que se revezava com ela no cuidado da casa e ainda teria que, ao fim do dia, pegar sabe-se lá quantas horas de condução para voltar a seu lar e começar a lavar, cozinhar e limpar sua própria casa.

Mulheres como minha mãe foram ensinadas que maternidade é amor e sacrifício em doses iguais.

Foram treinadas a não enxergar trabalho doméstico como trabalho.

O trabalho dela era dever.

O da empregada doméstica era um favor que nós, brancos, fazíamos dando a essas pessoas um emprego.

Cuidado com filhos, disseram, é apenas amor, nada além disso.

Toda mãe precisa fazer porque assim é a ordem das coisas na Terra.

Minha mãe saiu do chuveiro de roupão, celular na mão e ainda cantando.

Me viu sentada em sua cama e sorriu.

Como alguns hábitos nunca nos deixam, ela perguntou o que eu queria comer.

Eu disse que não estava com fome, mas tomaria uma taça de vinho.

Fui para a sala pegar duas taças de vinho enquanto ela se trocava.

Minha mãe, que passou andando rapidamente pelos anos de sua juventude e maturidade, agora vai do quarto à cozinha em passos curtos e muito lentos.

Já caiu algumas vezes e não quer voltar a tropeçar ou perder o balanço.

O chão, antes tão firme, hoje parece feito de areia.

É um andar bastante parecido com o de Alice, sua neta caçula de dois anos e meio. Mas da velhice poucos extraem beleza.

Minha mãe não reclama mais.

Os primeiros anos de velhice foram difíceis, teve uma complicação no coração, uma cirurgia e uma recuperação tensa. Depois disso, nunca mais reclamou.

Outro dia liguei e ela disse, num tom que não era de queixa mas mais de constatação, que seu joelho estava doendo. Eu falei: que estranho, isso nunca aconteceu antes. E ela respondeu: é que eu nunca fui velha antes.

Minha mãe se emputece mesmo é quando falam com ela no diminutivo: pezinho, casaquinho, corpinho.

Ela vira a mulher de minha memória adolescente: forte, imponente, furiosa. Não tenho pezinho!, diz enfática. E depois explica, mais calma, que velhice não é deficiência cognitiva nem uma volta à infância. Velhice é uma outra coisa. Quando pergunto o que é a velhice, ela dá os ombros e diz: você vai saber.

A velhice de minha mãe me ensina a ser mais paciente.

Nem sempre consigo, mas tenho tentado enxergar como um espelho - o que, com sorte, será.

Tenho que repetir as coisas três vezes, tenho que andar lentamente a seu lado, tenho que esperar ela se arrumar com a lentidão dos que não têm urgência para coisa alguma.

Uma ida ao supermercado da esquina leva horas.

Ela passeia com seu passo pequeno, curto, miúdo pelos corredores esbarrando em pessoas que sua visão periférica já não enxerga mais.

Quero berrar que preciso correr, trabalhar, entrar em reunião, que não tenho a tarde toda. Mas me seguro e vou indo atrás pensando nos dias em que íamos juntas ao supermercado, ela me colocava sentada no carrinho de compras, de costas para o movimento dele, e ia passando feito uma atleta olímpica pelos corredores, pegando tudo o que estava na lista, para voltar logo para casa e fazer o jantar.

Em minha memória ela ainda é a mulher alta, forte, imponente, segura, decidida que eu conheci enquanto crescia.

Mas vendo-a tão mais miudinha, sentada em seu quarto rindo de alguma coisa na TV, mãos que batem ritmada e lentamente sobre as pernas sem que ela perceba que está fazendo esse movimento, entendo que a vida é transformação.

Ver minha mãe cantando e rindo me enche de alegria. Gostaria de tê-la visto assim quando éramos crianças. Nunca a vi tão feliz como a vejo hoje. E tudo o que eu queria e precisava para crescer confiante era de uma mãe feliz. Radicalmente feliz.

Essa alegria ela talvez tenha sentido toda vez que via seus filhos felizes. Sem sequer imaginar que só pudemos ser quem somos graças a todos os sacrifícios que ela passou.

Não deveria ser assim.

Maternidade não é só amor.

É trabalho, o maior trabalho que alguém pode ter dadas suas responsabilidades.

Gosto de um ditado africano que diz que é preciso um vilarejo para cuidar de uma criança.

Jogar no colo de uma só pessoa o que precisa de um vilarejo para fazer é cruel e perverso. Criar crianças é dever de uma sociedade inteira.

Minha mãe é fruto de inúmeros privilégios, mas também de uma história de vida cheia de tristezas: passou a guerra na Itália, viu seu pai ser fuzilado, teve que fugir para o Brasil e viver num colégio interno.

Foi capaz de dar a nós quatro aquilo que ela mesmo nunca teve.

Que agora sejamos capazes de dar a ela uma velhice digna, dentro da qual ela passar rir e cantar até o último dia.

Feliz dia das mães.