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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Coisas que eu gostaria de dizer a Marcius Melhem se fosse sua amiga

Marcius Melhem - RT Fotografia/CS Eventos Divulgação
Marcius Melhem Imagem: RT Fotografia/CS Eventos Divulgação

Colunista do UOL

26/03/2023 12h03

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Eu não conheço Marcius Melhem pessoalmente. Fizemos um programa juntos, mas não trocamos uma palavra.

Por interesses diversos, vi atentamente a entrevista que ele deu ao Metrópoles. Duas vezes.

Fiquei com a impressão sincera que, até agora, Melhem não entendeu o que fez.

É aflitivo escutá-lo argumentando.

Se ele fosse meu amigo, eu gostaria de dizer a ele algumas coisas.

Muitas delas duras, e outras nem tanto.

A principal delas talvez seja que ele está deixando escapar uma oportunidade imensa de fazer história.

De ser o cara que bate no peito e diz: entendi as merdas que fiz. Errei. Errei grosseiramente. Vou começar a me redimir a partir de hoje.

E então começar mesmo a se redimir.

Com honestidade. Com paixão.

Em nome das filhas dele, que seja.

Em nome das netas que um dia ele talvez tenha.

Em nome de todas as mulheres que deram vida a ele - gerações e gerações de mulheres parideiras que passaram por coisas ainda piores do que passamos hoje e, ainda assim, resistiram.

Estudar o feminismo. Estudar o patriarcado. Estudar o machismo. Virar um porta-voz da luta.

Chamar uma a uma as mulheres que dizem ter sido assediadas e tentar entender o que elas sentiram e por que sentiram.

Escutar. Escutar. Escutar.

Refletir. Refletir. Refletir.

Viajar para os lugares mais sombrios da sua alma.

Ouvindo atentamente as entrevistas com novos depoimentos me pareceu nítido que ele encontraria espaço para isso.

A despeito de toda a dor, ainda existem carinho e afeto envolvidos.

Ainda existe alguma admiração.

Relações humanas não cabem em planilhas; há nuances e afetos que escapam de lógicas e objetividades. E que podem superar dores.

Mas, para ser esse cara, Melhem precisaria perceber algumas coisas.

A primeira delas é o que está de fato acontecendo.

Ele ainda não entendeu nada.

Sobre isso a antropóloga Beatriz Klimeck escreveu o seguinte no Twitter (obrigada por mandar esse tweet, querida colega Flávia Oliveira):

"É preciso olhar com maturidade para um cenário sensível como esse, entender que sim, é possível que o próprio acusado não compreenda alguns dos comportamentos como assédio, mas só por estar embebido pela normalização da sua posição de poder. E que isso não significa que ele não deva ser responsabilizado, mas sim que enquanto não olharmos para esses espaços onde as linhas são borradas, ainda teremos mulheres re-vitimizadas por 'aceitarem o teste do sofá' ou por normalizarem assédio. É sempre pior pra gente"

Ela tem razão.

Se Melhem não entendeu, não é por falta de inteligência, mas porque, capturado e articulado pela normalização da sua posição de homem em situação de poder, ele escolhe não olhar mais fundo.

Por quê? Eu diria que por medo.

Medo de olhar para o espelho e ver para além da personagem; ver o sujeito implicado em tudo o que está acontecendo - um medo que é demasiadamente humano.

Todos nós passamos pelo dia de nos implicar nas coisas que acontecem em nossas vidas e nos encarar sem máscaras.

Uns evitam como podem que esse momento chegue e, nessas horas, eu adoraria ser religiosa para achar que haverá um juízo final.

Eu sou eu e as minhas circunstâncias, escreveu Ortega Y Gasset.

Somos nós e as nossas circunstâncias - e, nessa sociedade, essas circunstâncias envolvem uma organização de relações que coloca o homem em posições hegemônicas sobre as quais ele não precisa sequer pensar para atuar motivado por um conjunto de poderes conferido a ele ao nascer.

Vamos por partes analisando o que ele diz na entrevista.

Melhem acredita que não fez nada que não faça parte da cultura do entretenimento.

É verdade. Ele está certo.

A indústria do entretenimento funciona desse jeito e isso não quer dizer que seja o melhor jeito, ou o jeito correto, ou o jeito que serve com justiça às mulheres.

Não nos foi nunca dada a chance de trabalhar em outro meio que não fosse esse - e com essas exatas regras.

Está ficando claro que esse jeito não é bom para nós mulheres.

Esse jeito nos oprime, apequena, silencia, diminui, exclui, assedia, abusa.

Estamos começando a falar, histórias escabrosas vêm à tona.

Mulheres estão ganhando consciência e entendendo o que estão passando e - mais importante - o que estrutura esse sistema de dominação e silenciamentos.

Homens interessados lutam para ganhar consciência e mudar o próprio comportamento.

Difícil mudar o comportamento quando o sistema favorece você tão maravilhosamente, mas é necessário porque o mesmo sistema que te favorece também te limita como ser humano e como homem estreitando seus campos de afeto.

Nada é mais triste do que limitar nossos campos de afeto. E, nessa hora, eu sinto compaixão por homens.

Melhem acha que assédio envolve necessariamente coisas como gritos e violências que são, por suas características, facilmente entendidas como violências.

Sem isso, ele acredita, fica difícil provar que foi assédio.

Outra vez, ele está parcialmente certo.

Para que uma mulher prove que foi assediada é preciso um vídeo e dezenas de testemunhas - e, ainda assim, haverá quem diga que não foi nada, que é chororô.

É exatamente esse o momento para começar a entender as múltiplas camadas do assédio e como elas se articulam dentro desse sistema hegemônico que dá ao homem o direito de agir assim ou assado.

Melhem acha que, como chefe, basta perguntar "você não gostou do que eu fiz?" a uma funcionária para que ela seja sincera na resposta.

Ele opta por desconsiderar que existem relações de poder, medos, receios, dívidas, aluguel, filhos, sonhos profissionais.

Ele acredita no "negociar livremente com o patrão".

Melhem acha que a Globo devia ter preparado ele para o cargo de diretor.

Aqui eu concordo 200% com ele.

Deveria.

É esse o movimento em direção a uma sociedade menos machista.

Orientar homens em cargos de poder.

Orientar e educar homens que vão exercer poderes corporativo sobre mulheres.

Mostrar a eles como o machismo pode por um lado favorecê-los e por outro diminuí-los. O mesmo sistema que nos mata os apequena.

Aqui vou contar uma rápida história que vivi recentemente, quando ainda fazia parte do corpo de roteiristas da casa.

Era uma reunião com dezenas de pessoas que seria comandada por um certo grande diretor.

Ele foi o último a chegar, chegou cheio de alegrias, simpatias e já falando muito alto, movido pela segurança que a masculinidade oferece.

Muita gente na sala, muitas feministas declaradamente feministas em volta da imensa mesa.

Logo no começo da reunião o diretor, com a palavra, soltou a frase: "nesses casos a gente vai devagar e começa colocando só a cabecinha".

O assunto era corporativo. Não envolvia nada que fosse minimamente erótico. E, mesmo que envolvesse, a frase não era adequada. Não hoje, não mais.

Por que foi dita? Porque esse é o mundo corporativo.

O jogo é de demonstração de poder. Ele, um homem branco, heterossexual e poderoso, faz o que quer e achou bom deixar isso marcado logo de cara.

Ali, ele riscou o chão. Vocês, mulheres, deixem de manias. Quem manda sou eu e eu digo que nada mudou.

Minha vontade era berrar.

Berrei? Não.

Fui reclamar no RH? Não.

Aquele emprego me era necessário, eu gostava do que fazia, eu queria que o tal diretor fosse com a minha cara. Essa é a empresa que vai dar um curso sobre lideranças masculinas em tempos de feminismo?

O diretor está no cargo até hoje.

E não é apenas a Globo. Tem menos a ver com a Globo e mais a ver com a sociedade.

Qualquer mulher que trabalhe em uma grande empresa, de qualquer coisa, em qualquer indústria, certamente terá histórias semelhantes - e até muito piores - para contar.

Melhem desconsidera essas nuances quando trata das acusações que recaem sobre ele.

Melhem acha que a divisão amizade/chefia não deveria ter sido misturada pelas funcionárias.

Ele avalia que ele sim foi capaz de separar as relações, mas muitas de suas subordinadas não foram.

Como se essa divisão tivesse que ser estabelecida por quem responde a ele e não pelo gestor.

Porque ele é homem? Não faz sentido, mas ele fala de modo a mostrar que está convencido que faz.

Ele acha que se a roteirista leva um livro e dá a ele uma ideia de programa com base nesse livro a única coisa que a roteirista fez foi levar o livro até ele. Um delivery de livro. A uberização da ideia de uma mulher.

Como se não houvesse investimento intelectual em ler o livro, associar o livro a uma pauta, falar com o chefe sobre por que daria um bom programa?

Um homem que argumente que seu nome deveria estar creditado como criador ou coisa parecida é visto como ambicioso; uma mulher é vista como chata, desequilibrada, exagerada, deslocada, egoica.

Melhem acha que se você vir seu chefe agindo errado você imediatamente pode dizer que ele está errado. Não tem por que não fazer isso.

Melhem vive num mundo de comportamentos binários. Ou precisa achar que vive porque qualquer outra coisa vai obrigá-lo a encarar o espelho.

Ele acha que se você vir seu chefe-amigo agindo errado, não falar nada e, depois de um tempo, chamar ele para viajar então você está confusa das ideias porque se o chefe agiu errado como você pode viajar com ele?

Se o chefe é também seu amigo, as camadas se misturam e você pode perfeitamente não conseguir ou querer criticá-lo enquanto chefe (não quer perder o emprego, não quer ficar mal com o chefe, não quer passar por humilhações que podem vir com a crítica) e ainda assim querer viajar com o amigo, até para, quem sabe, re-contextualizar a relação.

Melhem ainda não sabe nada sobre como a figura masculina foi construída para nos manter em submissão.

Sobre como o sistema da masculinidade hegemônica nos encoraja a buscar sempre a aprovação de um homem.

Melhem acha que se Calabresa não quisesse suas investidas libidinosas ela teria dito um não claro.

Para ele, apenas se esquivar de investidas do chefe não é dizer não.

Aqui seria importante que ele começasse a ler sobre consentimento.

Sobre como muitas vezes não conseguimos dizer não.

Ainda mais se a situação envolver uma dinâmica de poder da qual muitos e muitos e muitos chefes se aproveitam.

Sobre como o feminismo está, por causa dessa dificuldade, mudando o "não é não" para "só sim é sim".

Ele acha que uma funcionária que se esquiva de uma investida sexual em vez de dizer claramente "não" então é porque ela talvez queira sim e isso dá a ele o direito de seguir investindo.

Ele acha que se a funcionária que é também amiga te mostra fotos sensuais dela é porque ela está se oferecendo a você.

Eis aqui o mais bem recortado direito sexual dado ao homem ao nascer: uma mulher sempre quer.

Se ela encurta a saia, é para você.

Se ela pisca pra você na reunião, é porque quer dar para você.

Se ela aparece com um imenso decote na festa da firma em que você é o chefe, então é porque ela está muito a fim de transar com você.

Uma mulher não existe em si mesma; ela existe para você.

Para o seu gozo. Para o seu deleite.

Melhem nem considera que pode haver a situação de uma mulher mostrar a ele fotos sensuais porque talvez ela mesma ache que quer sim alguma coisa com ele, mas mudar de ideia depois.

Se mostrou as fotos, então queria dar. Se queria dar quando mostrou as fotos, vai querer dar para sempre.

Ele não entende que a vítima possa, ao mesmo tempo, ainda nutrir algum tipo de afeto, respeito e até admiração pelo predador.

Se nutre afeto, então não foi assediada ele acredita.

Ele não viu The Morning Show. Veja, Marcius. Veja pausando. Veja se colocando nos lugares de poder. Veja para entender como é sim possível que o predador seja um cara bacana e admirável.

Se ele viu, não entendeu.

Ele não percebe que a vítima possa precisar de tempo para elaborar a violência.

Ele acha que se uma mulher vai a uma festa com a amiga, é abusada na festa e a amiga não vê ela ser abusada, então o abuso não houve.

Ele acha que a mulher abusada se comporta sempre da mesma forma. Parece acreditar que existe uma cartilha do comportamento da mulher abusada.

Ele acha que uma mulher assediada imediatamente para de falar com o assediador.

Ele acha que agiu pelos sinais que recebeu.

Ou seja: como homem, ele recebe sinais e sua interpretação desses sinais é a única interpretação possível.

Ele acha que se uma mulher sente ter sido assediada ela não necessariamente foi assediada. O foco é o homem, não a mulher.

Ele acha que porque existem mulheres do lado dele que dizem não terem sido por ele assediadas então isso prova que ele não assedia mulheres.

Ele acha que é tratado como se fosse um alienígena no meio.

Ele não é alienígena.

Ele é bastante comum e talvez esteja se sentindo injustiçado como um Eduardo Cunha acha que foi injustiçado sendo preso por atitudes comuns num sistema em que quase todos são como ele.

Outra vez, errado Melhem não está.

Mas a vida está convidando ele a sair desse sistema de crenças e opressões.

Olhar a partir de outro ponto de vista. Até aqui, ele resiste a iniciar sua transformação.

Ele acha que porque o diretor Carlos Schroder era casado com Patricia Pillar, William Bonner com Fatima Bernardes e Ricardo Waddington com a chefe de figurino (que ele não diz o nome mas a gente diz porque não somos apenas parceiras: Marina Sanvicente) então por que ele não poderia se relacionar com as funcionárias?

Ele não entende relações de poder.

Ele acha que homens que casam com colegas de trabalho é do jogo, mas não faz o exercício de pensar como seria se fossem mulheres poderosas se relacionando com homens menos poderosos.

Ele acha que porque não foi demitido por justa causa então isso prova que ele não assediava.

Ele desconsidera que o sistema está todo organizado para proteger o assediador - inclusive via CLT.

Ele acha que foi vítima de um golpe organizado por pessoas que ele teria desagradado.

Ele não se implica na questão. Ele não tenta compreender o que sentem as mulheres.

Ele acha que o tal golpe foi idealizado para acabar com o humor dentro da Globo.

Por quê? Porque o que ele fazia desagradava a alguns - ele não diz a quem.

Ele acha que é sobre ele. Ele não entendeu que não é sobre ele. É sobre todas nós.

Ele acha que deveria ter sido dada a ele pela Globo uma prova documental de que não houve assédio, como se pudéssemos provar uma negativa. O que se prova é uma ação.

É que ele acha que provar que houve assédio deveria ser a coisa mais simples do mundo e que, portanto, ele deveria ter sido demitido por justa causa caso fosse mesmo um assediador.

Ele acha que é uma linha de defesa razoável dizer que o documento que a TV Globo soltou dizendo que ele foi afastado por práticas antiéticas não era para se tornar público e acabou se tornando.

E já que a carta não fala textualmente em assédio, então isso diz que não houve assédio. É um argumento que não faz sentido, mas ele insiste nele.

Ele acha que é possível que algumas denunciantes tenham sido convencidas (por forças misteriosas?) a acharem que foram assediadas, mas que o que viveram foi outra coisa.

Ele não sabe que está usando passo a passo contido no livro do machista que se defende de acusações de assédios e abusos. Ou sabe?

Ele acha que é possível que algumas mulheres tenham ido para o grupo das assediadas em busca de pertencimento e visibilidade.

Passar pelo que estão passando? Em nome de visibilidade? Não é justo pensar assim. Mas ele não quer correr o risco de se implicar. Melhor se manter na superfície.

Ele acha que ele foi alvo de um complô. Ele não vê o mundo ao seu redor.

Ele acha que pode se defender apenas dando exemplos de situações trocando os papeis do homem (ele) com a mulher (a que se diz assediada) como se não vivêssemos num mundo organizado por um sistema de gênero que diz qual manda e qual obedece.

Melhem não entendeu nada.

Parte disso é responsabilidade dele.

Mas a outra parte é a de uma sociedade que naturaliza, encoraja e celebra esses comportamentos.

Marcius, meu querido, se eu fosse sua amiga eu te encorajaria a ser o primeiro homem poderoso no mundo acusado de assédio que conseguiu perceber que se até ontem esse mundo te servia, hoje não serve mais porque ele foi erguido sobre muitos e muitos e muitos abusos e assédios.

Um mundo construído sobre o apequenamento da mulher, sobre nossos cadáveres emocionais. Sobre nossos silenciamentos e invisibilidade.

Adquirindo consciência dessa realidade, nutrido de uma nova alma, você pode puxar a fila dos poderosos que refletem, entendem, transformam e entram na luta para mudar de vez essa zorra total.

Vem mulherar com a gente e escrever uma nova história.