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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Atitude de Jô expõe a grande crise em que estamos mergulhados

Jô, do Corinthians, comemora seu gol durante partida contra o Internacional no Beira-Rio pelo campeonato Brasileiro A 2022 - Maxi Franzoi/AGIF
Jô, do Corinthians, comemora seu gol durante partida contra o Internacional no Beira-Rio pelo campeonato Brasileiro A 2022 Imagem: Maxi Franzoi/AGIF

Colunista do UOL

08/06/2022 14h12

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Jô foi flagrado numa noitada tocando alegremente um instrumento musical durante a derrota de seu time e de costas para o monitor que passava a partida. As imagens foram gravadas e divulgadas por alguém que estava no local. Meu colega Julio Gomes escreveu brilhantemente sobre os aspectos morais que envolvem o episódio. Recomendo leitura.

Quero falar aqui de um outro aspecto, que é o que me parece estar deixando parte da torcida bastante revoltada.

Infelizmente há aqueles que, diante de um sentimento legítimo, como frustração, tristeza e decepção, escolham reagir violentamente. É uma parte barulhenta da sociedade, e uma parte que tem se sentido mais livre para exercer sua delinquência porque um de seus representantes está no posto mais alto do funcionalismo público nacional. Mas, apesar de barulhentos, eles não são a maioria.

A maioria é composta daqueles que hoje estão exaustos.

A maioria é feita por pessoas que hoje trabalha quinze horas por dia, sete dias por semana, para, no fim do mês, escolher quais boletos vai conseguir pagar e quais vai ter que deixar de pagar. Dentro dessa maioria, tem as almas que amam uma camisa de futebol e tiram alegria e prazer vendo seu time jogar.

Mas nem todos podem ver porque atualmente os jogos são exibidos num canal fechado que, por sua vez, fica dentro de um canal por assinatura. É preciso pagar duas vezes. Em campo, os ingressos, a cada dia mais caros, podem ser comprados por uma gente que não escolhe, no fim do mês, quais boletos terá que deixar de pagar. Esse cidadão e essa cidadã já não veem seu time com a mesma regularidade de antes. Mas, ainda assim, amam aquela camisa.

O que eles esperam desse time? Que ele siga mobilizando alguns bons afetos, como alegria, prazer, regozijo. Esperam, também, comprometimento daqueles que vestem a camisa amada. Tudo isso eu escrevi para chegar aqui: a crise é de comprometimento.

A imagem de Jô de costas para o monitor sorrindo e cantando enquanto o time perdia foram vistas até mesmo por aqueles que já não podem mais ver o jogo pela TV ou no estádio. E, de imediato, elas deflagram a ideia do descompromisso. A ideia do "danem-se" vocês. Não estou dizendo que Jô pense assim, estou avaliando o que a imagem faz brotar no sentimento do torcedor e da torcedora.

A impressão de que estão se danando para a gente é absolutamente legítima e verdadeira. Ela não diz respeito a Jô ou ao Corinthians. Ela diz respeito a uma des-implicação política. Diz respeito a uma sensação real e concreta que está em circulação pela sociedade e que, sem encontrar elaboração, vai se manifestar nas pequenas coisas do cotidiano - e não nas urnas, que é onde ela deveria se manifestar.

A maioria da população brasileira não é representada politicamente. O povo não precisa de pesquisa para saber disso - embora haja muitas pesquisas que comprovam isso. O povo sente isso na pele todos os dias. Não vivemos mais em uma democracia representativa. Vivemos em uma democracia liberal que, como qualquer democracia liberal, defende os interesses dos grandes empresários que não são, nem nunca serão, os interesses do trabalhador.

Do que importa que a maioria queira taxação de grandes fortunas se ela não é boa para os grandes empresários? Do que importa que a maioria ache justo que se cobre IPVA sobre jatos e barcos se ela não é boa para os grandes empresários? Do que importa que a maioria queira direitos trabalhistas rigorosos se ela não é boa para os grandes empresários? Do que importa que a maioria queira poder se aposentar, queira uma rede forte de amparo social, queira saúde gratuita e para todos, queira educação gratuita de qualidade, queira creches públicas se essas coisas não estão de acordo com os interesses dos grandes empresários?

Esse sentimento explica ao mesmo tempo a quantidade de pessoas que vai votar em Lula em nome de um passado recente em que havia um pouco de representação política (refletida em poder de compra, em comida na mesa e em direito ao lazer) e também os 30% de pessoas que votarão em Bolsonaro mesmo depois de uma administração que glorifica a pulsão de morte: Bolsonaro tem um discurso anti-institucional que encontra adesão numa parcela da população que se sente abandonada e quer, como ele, que tudo se exploda.

Não ter mais nada a perder pode significar não ter mais pelo que esperar. Esse sentimento tem dois lados. Um, trágico. O outro, de luta. Não ter mais pelo que esperar pode se transformar em não ter mais por que esperar. É nesse instante que nascem as boas revoluções. É a partir de um desejo de pertencimento, de implicação, de comprometimento. Um por todos, todos por um é um clichê que, como todos, não nasceu do nada e carrega algum fundo de verdade.

Para a população pobre no Brasil, falta de comprometimento é imperdoável. Estamos falando de pessoas que acordam antes das cinco da manhã, que passam duas, três, quatro horas todos os dias em transporte público, que trabalham mais de oito horas por dia sete dias por semana e que, ainda assim, não desiste e dá seu jeito de sorrir. Falta de comprometimento não é valor aceitável, e fica menos aceitável nos momentos de maior crise.

As imagens de Jô festejando enquanto o Corinthians perdia trazem à tona esse oceano de sentimentos. E é sobre isso que precisamos falar. É hora de nos implicarmos na transformação desse país. Ativamente. Entendendo a gravidade do momento. A dor da população. A seriedade de um ano como esse.

Termino com uma oração que considero de uma beleza absurda. Eclesiastes 3.

"Para tudo há uma ocasião certa;
há um tempo certo para cada propósito
debaixo do céu:

Tempo de nascer e tempo de morrer,
tempo de plantar
e tempo de arrancar o que se plantou,

Tempo de matar e tempo de curar,
tempo de derrubar e tempo de construir,

Tempo de chorar e tempo de rir,
tempo de prantear e tempo de dançar,

Tempo de espalhar pedras
e tempo de ajuntá-las,
tempo de abraçar e tempo de se conter,

Tempo de procurar e tempo de desistir,
tempo de guardar
e tempo de jogar fora,

Tempo de rasgar e tempo de costurar,
tempo de calar e tempo de falar,

Tempo de amar e tempo de odiar,
Tempo de lutar e tempo de viver em paz".