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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que ganha a mulher que acusa um esportista de estupro?

Roosevelt Sousa - Arquivo Pessoal
Roosevelt Sousa Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

17/04/2022 13h26

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Eu conheço muitas mulheres que sofreram violência sexual e nunca acusaram quem praticou a violência. Eu mesma, por exemplo. Dito de outra forma: desconheço mulheres que não tenham sofrido algum tipo de abuso sexual: no trabalho, em casa, numa festa, num estádio, na rua. E, até onde sei, nenhuma delas deu queixa. Existem motivos para que nossas opções tenham sido pelo silêncio.

No livro "O Direito ao Sexo", a autora Amia Srinivasan escreve: O mais detalhado estudo realizado sobre crimes sexuais, publicado em 2005 pelo UK Home Office, estima que apenas 3% das denúncias de violência sexual são "possivelmente" falsas. Embora o número seja muito baixo, não podemos, claro, sugerir que um caso de falsa acusação seja pouco grave. Qualquer inocente condenado, em qualquer âmbito penal, constitui uma tragédia."

Tirando-se os 3% que são "possivelmente" falsos a gente tem, portanto, um estudo que diz que em 97% das vezes a vítima está falando a verdade. É um número muito alto para que, quando uma mulher declara publicamente ter sido estuprada, a voz dela não seja levada a sério. De cara, a dúvida impera. Estaria ela fazendo isso para chamar a atenção? Para destruir a vida do homem que ela acusa? Quem pode provar que ela diz a verdade se só havia ela e o acusado no momento do suposto crime?

Mas a pergunta que raramente é feita quando esse estudo é apresentado é a seguinte: quem é a pessoa que acusa falsamente outra pessoa de estupro?

Muito usualmente, é um outro homem que acusa alguém de ter estuprado uma mulher. E esse dado raramente é mencionado. Quando se fala em acusação falsa de estupro imagina-se, como explica Amia, uma mulher amargurada e disposta a acabar com a vida da pessoa que ela acusa.

Mas falemos mais atentamente sobre esse dado. Qual o perfil do homem falsamente acusado de ter estuprado uma mulher?

Nos Estados Unidos, entre 1989 e 2020, 147 homens foram falsamente acusados de estupro: 52% eram homens negros. A população de homens negros nos Estados Unidos gira na ordem de 14% e, dentro do mesmo grupo, 27% compõe a parte do total condenado por estupro. Um homem negro preso por violência sexual tem 3,5 vezes mais chance de ser inocente se comparado a um homem branco. E esse mesmo homem é usualmente pobre.

E quem acusa esse homem falsamente? Costumeiramente, um homem branco.

Qual o perfil da mulher que usualmente é a "falsa" vítima? Uma mulher branca.

Tudo isso está no excelente livro de Amia.

Estamos agora diante de um novo cenário quando falamos em "falsas acusações de estupro", certo?

Casos de violência sexual são complexos também porque é comum que não haja testemunhas. Exatamente por isso, a palavra da mulher que diz que foi abusada vale como prova.

Diante desse cenário cheio de camadas e interseções eu refaço a pergunta do título: o que ganha a mulher que acusa um homem de estupro?

A história recente diz sonoramente que ela não ganha nada. Mais do que isso: normalmente perde tudo. Perde o caso, perde o emprego, perde a privacidade, perde a dignidade, perde até a própria vida.

Conhecem alguma mulher cuja vida melhorou depois de acusar alguém de violência sexual, mesmo tendo ganhado a causa?

Por isso muitas de nós optamos por calar. Mas há aquelas mais corajosas que se recusam a silenciar.

O atleta de jiu-jitsu Roosevelt Sousa foi recentemente acusado de fazer sexo com uma mulher enquanto ela dormia, o que, obviamente, configura estupro. Seria importante considerar toda a realidade colocada acima para refletir sobre a acusação.

"Anatomia de um Escândalo" é uma minissérie que está no Netflix que avalia de forma bastante interessante a situação do homem branco e poderoso acusado de estupro.

No ano passado todos nós pudemos testemunhar o que passou Mari Ferrer, que foi dopada e estuprada enquanto trabalhava no Café de La Musique, em Florianópolis. A polícia investigou e chegou ao nome do comerciante André de Camargo Aranha como responsável pelo estupro e o Ministério Público então o acusou formalmente.

A despeito das contundentes provas que confirmavam o crime e apontavam Aranha como o autor, Mari foi recorrentemente humilhada pelo sistema de justiça que, como quase sempre acontece, coloca a vítima de violência sexual na posição de ter que se defender do crime que sofreu. Ao final, viu o acusado ser absolvido pelo princípio da dúvida.

Recomendo que assistam a minissérie. E, claro, que leiam o livro de Amia Srinivasan.