Topo

Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly Lacombe: O que queremos de Abel Ferreira?

Abel Ferreira observa Palmeiras em partida contra o Athletico - Ettore Chiereguini/AGIF
Abel Ferreira observa Palmeiras em partida contra o Athletico Imagem: Ettore Chiereguini/AGIF

Colunista do UOL

05/11/2021 14h09

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A história da relação entre o treinador português e o Palmeiras é uma história de sucesso estrondoso se deixarmos apenas os números falarem. Em um ano, Abel empilhou títulos, conquistas e finais. Mesmo se entrarmos no universo das coisas subjetivas, Abel possui ali um reino para chamar de seu; o time que ele montou tem abundância de competitividade e de potências. O que seria do Palmeiras nesse último ano sem Abel? O time, antes dele, parecia ensaiar uma curva para essa ladeira da decadência que tantos dos chamados "grandes" tem feito. A chegada de Abel foi uma pequena revolução, e o Palmeiras está hoje nesse lugar que é o mais alto do futebol das Américas.

Questiona-se o fato de o Palmeiras ser um time defensivo e que não sabe jogar quando precisa atacar, pressionar, negociar os pequenos espaços. Tendo a concordar com essa análise, mas não sei também como, no tempo restrito que todo o treinador hoje tem para "mostrar resultado", poderia ser muito diferente disso. Abel construiu uma equipe que tem uns 20 jogadores que poderiam facilmente ser chamados de titulares, tem elenco para montar todo tipo de tática e de estratégia e, em jogos recentes, o time parece estar se soltando e mostrando um futebol mais - como diriam antigamente - vistoso.

"Abel é um ranzinza em público", dizem. Verdade. Mas precisaremos admitir que a lista de ranzinzas no futebol é enorme. "Abel tem pouca paciência com a desorganização do futebol brasileiro" - todos temos - "e vez ou outra tende a se manifestar de forma mais arrogante" - outra característica que muitos treinadores brasileiros possuem.

"Abel é destemperado". Sim, e tem seus dias de Bernardinho à beira do gramado - atualmente menos do que quando chegou. Desse tipo de descontrole apaixonado, com todo o respeito aos que a criticam, eu gosto. Claro que se o descontrole partir para ofensas e agressões já vai perder meu apego, mas um descontrole apaixonado que não fere ninguém, esse descontrole de torcedor e de torcedora, eu associo à uma bem-vinda mobilização de afetos.

"Abel tem pouca paciência com entrevistas coletivas". E quem não teria? Esse circo midiático armado para bajular patrocinador, com o profissional que está dando a entrevista escondido atrás de produtos empilhados à mesa, com uma tela atrás dele tão poluída por logotipos de marcas que fica difícil prestar atenção em qualquer outra coisa, com algumas perguntas feitas apenas para cutucar o entrevistado... o cenário todo exige a paciência de um profissional zen-budista.

Dito tudo isso, é natural que o profissional que, mesmo depois de uma derrota, se sente na cadeira e responda a todas as perguntas, das melhores às piores, com a educação, a atenção e a cordialidade que esperaríamos de um atleta, de um dirigente ou de um treinador nesse lugar, seja aquele que vai ganhar nossa simpatia e nosso respeito.

Mas infelizmente, o circo é armado para tirar o que de pior temos para dar - e acho razoável supor que qualquer um de nós, nesse ambiente controlado por patrocinadores e media training, teria dias de tropeço moral.

Leio que existe agora uma tentativa do Palmeiras de trazer toda a família de Abel para morar no Brasil porque, desse modo, ele poderia ser mais facilmente convencido a seguir no clube. Trazer a família para morar nesse Brasil bolsonarista, às vésperas de um 2022 que se anuncia ainda mais violento e fascista, já seria insano se eles estivessem vindo da Síria (a violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria). Mas sair de Portugal, de uma Portugal que tem lidado com a pandemia e com a crise econômica de forma decente e socialmente solidária, para vir morar nessa bagunça econômica, civil e militar, não teria sentido nenhum.

Muitos dirão que, a depender do dinheiro em jogo, tudo se justifica. Eu tenderia a discordar. O dinheiro já está nesse jogo e, se podemos intuir um pouco do que Abel quer da vida, não me parece que seria o dinheiro que o faria decidir. Mais provável seria, na minha opinião, que a afinidade com o Palmeiras fizesse Abel optar pela mudança da família. Afinal, é justamente o futebol que mobiliza paixões capazes das maiores insanidades.