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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly Lacombe - Futebol e violência: dias piores virão

Torcedores do Grêmio invadem campo após a derrota para o Palmeiras - Reprodução / TV Globo
Torcedores do Grêmio invadem campo após a derrota para o Palmeiras Imagem: Reprodução / TV Globo

Colunista do UOL

04/11/2021 15h51

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Leio no UOL que a justiça gaúcha proibiu as organizadas do Grêmio de irem ao estádio por 180 dias e também interditou a parte da arquibancada onde elas usualmente ficam. Eu acho sempre muito ineficiente a forma como a justiça lida com a violência (no futebol e na sociedade alargada também).

Sou a favor da punição diante de atos de barbárie, e acho que é sempre bom deixar isso registrado. O que me incomoda é essa eterna punição que não resolve nada, não educa, não reforma, não re-socializa ninguém, muito pelo contrário. Hoje em dia, os jogos televisionados reúnem um número infindável de câmeras. Além disso, tudo nos estádios que passaram a se chamar arenas é filmado, gravado, registrado. É, portanto, perfeitamente possível saber quem foram os torcedores que saíram performando suas masculinidades intoxicadas depois do jogo do Grêmio contra o Palmeiras.

Feito isso, seria preciso punir essas pessoas de forma mais criativa a fim de reformá-las socialmente. Como? Eu sou apenas uma cabeça pensante, mas, se houvesse interesse, tenho certeza que um grupo de encarregados poderia ter excelentes ideias. O que me passa pela cuca? Aulas sobre educação social, colocar essas pessoas para trabalhar na manutenção do estádio do time que dizem amar, prestar algum tipo de serviço social... pensamentos jogados ao vento.

Estamos enfrentando um período muito instável de nossa história e épocas de grande desigualdade social, insegurança alimentar, fome, desemprego, violência policial, falta de moradia, de acesso a saúde e epidemias de depressão e ansiedade fazem a agressividade do torcedor aumentar. Dois mil e vinte e dois vai ser um dos anos mais tensos de nossas vidas: eleições altamente polarizadas, pessoas encorajadas a saírem de casa armadas, quase nenhum respeito a formas de existência que se diferenciem do que conhecemos como a família tradicional brasileira: uma família de classe média branca, conservadora e cristã formada por papai, mamãe e filhos heterossexuais.

Essa família é sempre representada de forma idílica e fictícia pela comunicação como sendo o núcleo de todas as coisas corretas da vida - como se famílias assim existissem, como se esse papai não traísse livremente a mamãe, como se essa mamãe não fosse obrigada a realizar sozinha todo o trabalho doméstico e não vivesse sempre esgotada e silenciadas, como se esses filhos não fossem - como em todas as famílias brasileiras - pessoas possuidoras de neuroses e paranoias. Como se o retrato mais honesto da família brasileira não fosse completamente diferente desse desenho e não envolvesse mães solo, mães periféricas que trabalham fora de casa e, quando chegam de volta cansadas, seguem trabalhando na faxina, na preparação do jantar, lavando roupas e louças.

Enxergar o futebol como evento separado dessa realidade social é perder a chance de usar o jogo que tanto amamos para ajudar a passar por fases como a que nos encontramos - e que está muito perto de piorar. Torcedores são também trabalhadores que estão desempregados, ou sub-empregados, endividados, exaustos, revoltados, isolados. Nessa hora, as masculinidades tóxicas tendem a se agravar e por isso aumentam muito os casos de agressões contra mulheres, estupros, feminicídios. Nesse contexto, uma derrota do seu time de coração ganha contornos ainda mais dramáticos: se tudo mais está em ruínas, e só o futebol mantém nossa potência vital, como reagir à derrota, ao rebaixamento, ao erro daquele aparato tecnológico que faz as vezes de juiz e não deveria jamais errar?

Diante desses conflitos, esse torcedor enfraquecido, oprimido e esquecido, se veste de macho valentão e, ao primeiro tropeço de seu time, à primeira injustiça daquele instrumento que - juraram a ele - traria justiça máxima ao futebol, se autoriza a sair quebrando tudo.

É preciso tratar das causas e não dos sintomas porque tratar do sintoma não resolve absolutamente nada - é só enganação, performance, show para inglês ver.

Somos uma sociedade adoecida, amedrontada, acuada. Enquanto o sistema econômico for o da exploração e da opressão absoluta à classe trabalhadora, enquanto assistirmos passivamente a uberização de todas as vidas, testemunharemos o aumento da violência nos estádios, nos lares, nos trabalhos, nas ruas.

Se não tratarmos todas essas questões futebolísticas como questões sociais e não tentarmos saídas alternativas que não envolvam mais punição e mais exclusão, dias muito piores estarão a caminho.