Milly Lacombe

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Sapatão de sítio

Eu tinha 20 e poucos anos quando fiz meu mapa astral com um guru indiano em Pinheiros, São Paulo. Na chegada, o astrólogo disse que gravaria a leitura porque tinha por hábito jamais receber a mesma pessoa duas vezes. As fitas - eram fitas cassete - seriam entregues ao término da consulta para que eu pudesse guardar, escutar, refletir. Para sempre.

Logo nos primeiros quinze minutos da leitura eu fui avisada por ele que estaria em meu caminho a possibilidade real de morar no campo num futuro nem tão distante. Era como se o astrólogo estivesse me dizendo que eu talvez fosse uma das tripulantes de uma nave espacial que orbitaria Netuno. Morar no campo era rigorosamente impossível. Eu não suportava o mato, os bichos, o silêncio e - especialmente - os insetos. Parei de escutar o que dizia o guru e fiquei pensando em quantos pontos meu time ainda precisava para chegar às finais. Meu desprezo pelo que disse o astrólogo foi tanto que eu, meses depois, precisando de fitas para gravar uma entrevista, usei as da leitura do mapa astral e gravei por cima.

Corta e adianta o filme.

Aos 44 anos eu fui morar no campo. Voluntariamente. De mala e cuia.

O que aconteceu entre aquela leitura de mapa astral e o momento em que me mandei da cidade? Muitas e muitas coisas.

Eu perdi um grande amor num acidente de trânsito, me casei, me mudei para Nova York com minha mulher, virei dona de casa, fui traída, morri e voltei para o Brasil irrecuperavelmente morta.

Foi nessa condição de ausência de vida que, sem dinheiro para me sustentar em São Paulo, fui ocupar a cabana que minha mulher e eu tínhamos erguido no meio do mato. Cabana que eu frequentava apenas acompanhada, jamais sozinha. Lugar que me recebia em ocasionais fins de semana, raramente mais do que isso. Amigas que sabiam da minha relação com a roça e em como eu reagia diante de um inseto achavam que eu estava em delírio. Eu nada respondia porque sabia que, quando estamos mortas, não faz muita diferença para onde vamos.

Fui para o mato completamente sozinha e dilacerada. E então, numa manhã tão fria quanto ensolarada, pensei no astrólogo. O que mais ele teria dito? Onde estavam aquelas fitas? A lembrança foi voltando. Tudo apagado, tudo silenciado, tudo ignorado. Como pude ser tão arrogante de achar que aquela jovem de 20 e tantos anos permaneceria a mesma pessoa? Que a vida não daria rasteiras, que eu não perderia pessoas e casas, que eu me manteria sempre por cima.

Aos 44 anos, lá estava eu esquecida e morta no meio do mato.

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Pois foi no campo que renasci e me reinventei. Foi lá que comecei a entender quem era e para onde apontava meu desejo. Foi na roça que dei os primeiros passos num caminho que parecia ser meu. Ao lado de cachorros, galinhas, vacas, porcos, tucanos, seriemas e muitos, muitos insetos.

Agora sei que me encaixo na categoria sapatão de sítio. Gosto desse predicado e já peguei minha carteirinha. É minha chave hoje, é como me reconheço e onde me refaço. É no campo, como uma autêntica sapatão de sítio, que minha melhor versão floresce. É no meio do mato, de botina e chapéu, que me sinto em casa.

Mas quem sabe qual será a mulher de amanhã?

Não cometo mais a insanidade de duvidar do balanço da vida. Se quiser fazer deus rir, conte a Ela seus planos, diz o ditado. Pois. Devo ter feito Ela rir bastante quando desdenhei da possibilidade de me transformar em outra pessoa. Hoje compreendo que tudo é metamorfose e que, antes de nosso voo final, deixaremos muitas vezes de ser borboleta para voltar a ser lagarta, quebrar o casulo e, outra vez, bater asas. Até lá, orgulhosamente sapatão de sítio.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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