Milly Lacombe

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Leila Pereira e sua silenciosa revolução de afetos

Uma seguidora no Twitter me mandou a imagem de Leila Pereira confraternizando com as crianças flamenguistas que iriam entrar em campo com o time carioca antes da partida contra o Palmeiras em São Paulo. No vídeo, Leila coloca a mão na cabeça das crianças, escuta o que dizem, conversa, posa para fotos, sorri.

Parece pouca coisa, mas eu argumentaria que não é.

O futebol está marcado pelas mais variadas formas de violência, tanto no campo do concreto quanto do simbólico. Leila entrou desavisada num mundo pronto para engoli-la. De cara, foi ridicularizada, enfrentada, combatida por muitos de seus colegas. Na foto já histórica que tirou com executivos de uma das ligas que pretende comandar o campeonato nacional em algum momento futuro, ela aparece espremida. Ao seu lado esquerdo, um homem de pernas esparramadas e ao lado direito outro de pernas bem abertas também, ainda que não no compasso do outro. Trata-se de uma das tecnologias do machismo que o feminismo nomeou como "manspreading", que é a pratica de sentar com as pernas bem abertas, especialmente em ambientes públicos, para marcar seu lugar de homem no mundo enquanto, ao mesmo tempo, encolhe o da mulher. Toda mulher, feminista ou não, sabe o que é isso.

Leila foi compreendendo onde se meteu. Não era, como ela talvez tivesse imaginado, o mundo do empresariado e dos banqueiros - igualmente machista mas com menos demonstrações públicas explícitas de histeria. Aos poucos, ela foi se impondo. Muitas vezes, teve que berrar mais do que seus colegas para ser ouvida. Nessa hora, uma mulher é sempre colocada no papel da chata desequilibrada. Ninguém enxerga que ela faz isso para sobreviver.

Ao final do que parece que será seu primeiro mandato, ela vem adquirindo cada vez mais personalidade. Compreendeu como se movimentar entre cobras, compreendeu seu papel na luta feminista dentro do futebol, compreendeu que brigas comprar publicamente e quais melhor travar reservadamente.

Leila tem sido elogiada por rivais, o que é raro. Os palmeirenses que acharam razoável chamá-la de bruxa em coro no estádio hoje já não têm mais a mesma petulância machista, encolhidos na sombra que Leila faz. Como chefe de delegação na viagem da seleção brasileira fez o que ninguém até ali tinha feito e falou sem reservas sobre os crimes de violência contra a mulher que envolvem jogadores que já vestiram a camisa amarela. Ao dar esse passo, obrigou que outros ali dentro fizessem o mesmo e assim mudou o curso dessa história dentro da CBF.

O carinho dela com os pequenos e com as pequenas torcedores e torcedoras rivais é a imagem que melhor traduz seus métodos. É apenas elegante e decente tratarmos assim aqueles que vestem camisas que não são as nossas - especialmente crianças. A imagem do comportamento da presidente circula e mobiliza afetos que hoje são estanhos ao futebol: gentileza, carinho, amor, respeito.

No domingo, durante a manifestação reacionária bolsonarista na praia de Copacabana, um deputado disse aos berros que o que falta no Brasil é homem com testosterona. É uma declaração escancaradamente vulgar, machista, misógina e transfóbica. Uma declaração cometida à luz do dia, diante de câmaras de TV e que retrata o pior desse país.

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Precisamos de homens que compreendam que nossa força vem de nossas vulnerabilidades. Precisamos de pessoas em situação de poder que usem suas oportunidades para gerar inclusão e não medo, violência e separação. Precisamos de lideranças que façam a gestão de afetos e não apenas de capital.

Nessa segunda, a presidente do Palmeiras será entrevistada no Roda Viva, da TV Cultura. Seu treinador, Abel Ferreira, já foi ao mesmo programa. Seria importante que os rivais do Palmeiras percebessem que o clube parece estar anos à frente em algumas importantes questões e começassem a tentar entender o que tem sido feito ali dentro que deixa o Palmeiras nessa situação privilegiada. Leila concorre a um segundo mandato e eu, mesmo sendo anti, fico animada pensando em como ela ainda pode se transformar, se letrar no feminismo e o que mais ela será capaz de fazer tendo seu horizonte expandido.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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