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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É indecente, e burro, que times e seleção furem a fila da vacina

Jogadores da seleção brasileira durante treino na Granja Comary - Lucas Figueiredo/CBF
Jogadores da seleção brasileira durante treino na Granja Comary Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Colunista do UOL

02/06/2021 19h02

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A notícia de que a Conmebol organiza a logística para que todas as dez seleções que vão disputar a Copa América estejam devidamente vacinadas antes que cheguem ao Brasil é mais uma dessas que precisa entrar na lista dos absurdos que estamos enfrentando. Durante uma pandemia, não faz sentido vacinar pessoas sem que sigamos um plano de vacinação nacional que pode nos levar à imunização de rebanho. Vacinar a esmo não nos conduzirá a lugar algum.

Um programa nacional de imunização deve ser implantado durante epidemias e pandemias de modo a fazer com que a doença, e o contágio, possam ser contidos. E, ainda que tenhamos falhado miseravelmente até aqui, existe um programa que foi colocado em prática e está sendo utilizado. Ele determina, por exemplo, que pessoas de grupos de risco e com comorbidades tenham prioridade, assim como determina a ordem dos grupos etários que serão vacinados.

O Programa Nacional de Imunização brasileiro, o PNI, tem quase 50 anos, reconhecimento mundial e é um dos maiores programas de vacinação do mundo. "O PNI é exemplo mundial de como se organiza o sistema de vacinação em uma população de mais de 200 milhões de pessoas e em um território do tamanho do Brasil", explica Carlos Gadelha, ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos para a Saúde do Ministério da Saúde (2011-2015) e coordenador do grupo de pesquisa sobre desenvolvimento, complexo econômico industrial e inovação em saúde da Fiocruz, em texto publicado aqui.

Somos, portanto, gigantes nessa área.

O Brasil vacina em um só dia 10 milhões de crianças contra a poliomielite anualmente. Em 2010, durante o surto de H1N1, foram vacinadas 80 milhões de pessoas em três meses. Em 2009, 40 milhões de jovens foram vacinados contra rubéola. Esses dados dão uma ideia do que podemos fazer através de nossa rede pública quando existe interesse político.

No plano de vacinação contra o H1N1, quando foram vacinadas 80 milhões em três meses, o governo federal comprou a vacina e as seringas e fez um cronograma de distribuição. Definiu a quantidade destinada a cada estado e os estados definiram como ele seria distribuído aos municípios. Tudo definido, uma grande campanha de vacinação foi organizada e efetivada, para informar à população o que estava sendo feito e como cada um participaria desse programa.

A comunicação em massa é parte determinante de qualquer programa de imunização nacional. Em 2009, contra a rubéola, Cesar Cielo foi convidado para ser o garoto-propaganda da campanha que pretendia mobilizar uma população jovem, entre 19 e 49 anos e a imagem dele foi usada nacionalmente a fartar, chamando para a vacinação.

Uma coisa que os profissionais da saúde costumam dizer é que vacina é diferente de vacinação. Vacinação é planejamento, estratégia, selecionar grupos prioritários e estabelecer objetivos. Não é sair vacinando a esmo: vacinar quem pode pagar, atletas olímpicos, jogadores de futebol... E para que a gente alcance a já famosa mas pouco compreendida imunidade de rebanho, 70% da população precisará estar vacinada, e rápido.

Se tivéssemos imunizado 80 milhões de brasileiros em três meses, teríamos tido enorme impacto na diminuição da carga da doença, poderíamos seguir a vacinação com calma e estaríamos celebrando a chegada da Copa América. Mas nosso presidente recusou, apenas de uma fornecedora, 70 milhões de doses e isso não pode ser jamais esquecido.

Além disso, alguns parecem pensar que vacinação é um salve-se quem puder e que, ao se vacinarem viajando a Miami, arrumando atestado falso de comorbidade ou furando a fila, estarão livres do contágio. Não estarão, meus caros. Enquanto não houver vacinação em massa, e de forma rápida, o vírus seguira sofrendo alterações e a vacina que você tomou pode não adiantar para nada. Toda saúde é pública. Se a saúde de um sujeito do outro lado do mundo afeta a minha, como podemos pensar em saúde sob termos individuais?

Então, essa estratégia de sugerir que alguns possam furar a fila para que copas e campeonatos recebam chancela moral de realização é, além de burra, indecente. É preciso que se respeite a estratégia de vacinação e se CBF, Conmebol, FIFA, COB ou quem quer que seja tiver interesse em ajudar podem organizar campanhas pedindo que a vacinação no Brasil seja acelerada, que mais doses sejam compradas, que mais dinheiro seja investido no Plano Nacional de Operacionalização de Vacinação, o PNO.

Podem também fazer campanhas de conscientização como a que a atriz Leandra Leal, por conta própria, está fazendo em seu Instagram. Podem parar com a bobagem de, antes dos jogos, darem informações vazias como o número de vacinados sugerindo que esse é o número de imunizados e não o de doses aplicadas. Podem parar de dizer em números absolutos quantos casos de Covid foram registrados e quantos foram fatais porque, em números absolutos, essa é uma informação vazia. Se querem colaborar, é preciso que se diga o dado percentual, que essa informação seja contextualizada.

Estamos dentro de um filme de terror e, bizarramente, pensando em trazer para cá, nesse momento fúnebre de nossa história, uma Copa - uma festividade, portanto. Não faz sentido algum, nem estrutural, nem ético, nem moral, nem espiritual, nem logístico, nem filosófico, nem esportivo. Era hora de respeitarmos nossos mortos, de acelerarmos a vacinação, de nos curarmos.

Mas a Conmebol não pensa assim, e encontrou em Jair Bolsonaro, uma dupla de ataque perfeita. A fim de legitimar a Copa América no Brasil durante uma pandemia que já levou 500 mil dos nossos, a melhor ideia é propor que atletas furem a fila da vacina.

É indecente, imoral, é delinquente. Até esse momento temos menos de 15% da população brasileira imunizada. É uma vergonha, uma afronta, e exige-se reparação.