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Julio Gomes

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Há 10 anos, mundo parou para a 'Guerra dos Clássicos' e o futebol mudou

Cristiano Ronaldo, do Real Madrid, e Lionel Messi, do Barcelona, em jogo da LaLiga, em 16 de abril de 2011 - Victor Carretero/Real Madrid via Getty Images
Cristiano Ronaldo, do Real Madrid, e Lionel Messi, do Barcelona, em jogo da LaLiga, em 16 de abril de 2011 Imagem: Victor Carretero/Real Madrid via Getty Images

16/04/2021 12h30

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Lá se vão exatos 10 anos do início do que nunca se havia visto. A "Guerra dos Clássicos". Uma epopeia que colocaria frente a frente o Barcelona de Guardiola e o Real Madrid de Mourinho quatro vezes em apenas 18 dias. Um jogo pela Liga espanhola (que faz aniversário hoje), a final da Copa do Rei e duas partidas pelas semifinais da Liga dos Campeões da Europa. "Só" isso.

No fim de tudo, o Real Madrid ficou com um título (da Copa do Rei) e com o "álibi" de arbitragens polêmicas que poderiam ter mudado o destino. O Barcelona ficou com o título da Liga espanhola e a passagem para a final da Champions, que também ganharia. Além, claro, de ter entrado de vez no imaginário popular como um dos grandes times de futebol da história, comparado ao Santos de Pelé. O futebol europeu teve um antes e um depois daquela série épica de confrontos.

O Barcelona estava na terceira temporada sob o comando de Guardiola. A primeira, 2008/2009, havia acabado de forma perfeita (no ano natural de 2009, o Barça conseguira o tal "sextete", ganhando tudo o que havia para ser conquistado). Na segunda, 09/10, a máquina do Barça ficou sem o título europeu porque parou na Inter de... Mourinho. Natural, pois, que o português se transformasse na grande solução do Real Madrid para resolver o problema.

O clima entre jogadores de Barcelona e Real Madrid não era ruim. Juntos, grande parte deles havia sido campeã da Europa (2008) e do mundo (2010). Mas aí vieram Mourinho e seu discurso de guerra. O primeiro clássico dele, ainda em 2010, acabou em humilhação: goleada de 5 no Camp Nou e Piqué fazendo a "manita", mostrando os cinco dedos da mão. O clima começava a azedar e a panela de pressão explodiria meses depois.

Em 2011, na reta final da temporada, o Real Madrid conseguia mostrar uma competitividade que há muito não tinha. Chegou à semifinal da Champions pela primeira vez desde o último título que o clube havia conquistado, em 2002, após seguidas eliminações nas oitavas de final. E o Barcelona seguia na dele, uma máquina de jogar futebol, atropelando, humilhando, encantando.

Quiseram os deuses que houvesse a maratona épica de clássicos em um espaço de duas semanas e meia. O mundo inteiro parou para ver.

Hoje, é aniversário do primeiro da série - e menos importante, convenhamos. No dia 16 de abril de 2011, os gigantes se enfrentaram pela 32a rodada do campeonato. O Barcelona tinha oito pontos de vantagem, então era difícil imaginar uma reviravolta. O clássico foi morno, terminou empatado por 1 a 1, com um gol de pênalti para cada lado, e de fato não mudou o destino da Liga: o Barça foi campeão pela terceira vez seguida. Abaixo, falarei um pouco sobre este e os outros três jogos, com ficha técnica de cada um. Aliás, curiosamente os dois times tiveram quatro escalações diferentes nas quatro partidas.

Aqueles grandes clássicos deixaram três marcas muito importantes no futebol e que determinaram o que viria a seguir, ao longo da década.

A mais óbvia: intensificou o debate sobre quem era o melhor, Messi ou Cristiano Ronaldo? O português havia sido eleito o melhor do mundo em 2008, ainda com a camisa do Manchester United. Messi havia sido eleito pela primeira vez em 2009 e repetiu em 2010, apesar de outros caras terem brilhado intensamente naquele ano (Xavi, Iniesta e Sneijder). Em 2011, seria uma espécie de tira-teima no duelo direto entre eles. E a teima ficou, pois ambos brilharam.

A segunda: a transição de Mourinho para Guardiola no posto de melhor técnico do mundo e a ruptura entre eles. Mourinho tinha o reconhecimento geral, pois havia brilhado no Porto, no Chelsea e na Inter de Milão. Chegou ao Real como salvador da pátria e estava se mostrando à altura da responsabilidade. Mas Guardiola, que havia sido jogador do Barça quando Mou era o auxiliar técnico, vinha com ideias novas e fazia, pelo terceiro ano seguido, o Barcelona jogar um futebol que encantava o mundo.

Eles eram amigos. Mas justamente nas entrevistas dadas naqueles 18 dias romperam de vez. Mourinho acusava o Barcelona de ganhar com ajudas dos árbitros (a célebre coletiva do "por que?, por que?, por que?"). E Guardiola perdeu a paciência, dizendo que o português era o "puto amo, o puto chefe", que não participaria mais dos debates midiáticos e se concentraria apenas em preparar o time (e ganhar). Virou herói na Catalunha.

Depois dos clássicos, ficou claro que o "amo" era Guardiola. E é até hoje. Ali, o bastão foi passado. Pep segue sendo o técnico mais cobiçado do mundo, enquanto Mou ficou parado no tempo e hoje não desperta mais paixões.

Aqueles clássicos acabaram estampando em Mourinho uma fama de retranqueiro que já estava sendo construída (principalmente pelos duelos entre Inter e Barça, em 2010), mas que ainda não estava cristalizada. Aqui, estamos chegando ao terceiro ponto. A "Guerra de Clássicos" influenciou no estilo do jogo.

Assim como em 82 a defensiva Itália derrubou a arte do Brasil e isso fez com que o futebol se inclinasse para um jogo mais reativo e feio, em 2011 o sucesso de Guardiola contra Mourinho influenciou para que o jogo ganhasse um viés mais ofensivo e plástico ao longo da década. O jogo posicional e de posse de bola "explodiu" e hoje faz parte do dia a dia. No Brasil, ainda há muitas barreiras, mas na Europa está consolidado.

É claro que, ao mesmo tempo, Mourinho mostrou naqueles clássicos que havia caminhos para derrotar o belo jogo do Barcelona. Havia formas de contestá-lo. E isso também influenciou os anos seguintes - em 2012, por exemplo, o Barça, no último ano de Guardiola, caiu diante do ônibus estacionado pelo Chelsea, que seria campeão da Europa.

Mais tarde, Pep levaria seus conceitos ao Bayern de Munique e ao Manchester City. Nunca mais seria campeão da Champions, e muitas vezes esbarrou em times que colocaram em prática armas que Mourinho mostrou nas batalhas de 2011.

Foram dias realmente especiais, que estão na memória de quem viveu tudo aqui. Na época, eu era editor-chefe de mídias digitais e analista da ESPN. Comentei o primeiro jogo da série, este que completa 10 anos hoje, na TV - foi meu primeiro superclássico como comentarista. Depois, embarquei para a Espanha e acompanhei nos estádios as duas partidas semifinais da Champions League. Vamos lembrar a série de jogos? Aqui vai:

16/4/2011 - REAL MADRID 1 X 1 BARCELONA - CAMPEONATO ESPANHOL

Como eu disse acima, foi apenas o aperitivo. O Barça liderava a Liga com folga e o empate praticamente decretou o título. Mourinho escalou um time defensivo, com Pepe no meio de campo, sacando Ozil. Albiol foi expulso no segundo tempo, e Mou já começou o processo de pressão sobre os árbitros. "Estou cansado de jogar com um a menos contra o Barça, é missão impossível", disse. No fim, empate com um pênalti convertido por Messi, outro por Cristiano. Os times:

REAL - Casillas; Sergio Ramos, Albiol, Ricardo Carvalho e Marcelo; Pepe, Xabi Alonso (Adebayor), Khedira e Di María (Arbeloa); Cristiano Ronaldo e Benzema (Ozil).

BARÇA - Valdés; Daniel Alves, Puyol (Keita), Piqué e Adriano (Maxwell); Busquets, Xavi e Iniesta; Pedro (Afellay), Messi e Villa.

Árbitro: Cesar Muñiz Fernández.
Amarelos: Adriano, Piqué, Marcelo, Arbeloa, Alves, Xavi, Valdés. Vermelho: Albiol.
Gols: Messi, aos 8min, e Cristiano Ronaldo, aos 37min do segundo tempo.

20/4/2011 - BARCELONA 0 X 1 REAL MADRID - COPA DO REI

O segundo round foi para Mourinho. Na prorrogação, um gol de cabeça de Cristiano Ronaldo deu o título ao Real Madrid, depois de 18 anos sem conquistar o segundo torneio mais importante do país. A partida foi disputada em Valência, em campo neutro. Metade do estádio de Mestalla estava de branco, a outra metade de azul-grená.

O Real Madrid foi mais intenso no primeiro tempo, mas o Barcelona melhorou e criou chances no segundo tempo. Na prorrogação, um cruzamento de Di María encontrou na área Cristiano Ronaldo, que Mourinho havia escalado como centroavante. Ele subiu no terceiro andar e fez o gol do título. No fim da partida, Sergio Ramos deu a letra: "Mourinho é o capitão do barco e iremos à morte com ele".

BARÇA - Pinto; Daniel Alves, Mascherano, Piqué e Adriano (Maxwell); Busquets (Keita), Xavi e Iniesta; Pedro, Messi e Villa (Afellay).

REAL - Casillas; Arbeloa, Sergio Ramos, Ricardo Carvalho (Garay) e Marcelo; Pepe, Xabi Alonso, Khedira (Granero), Ozil (Adebayor) e Di María; Cristiano Ronaldo.

Árbitro: Undiano Mallenco.
Amarelos: Adriano, Messi, Pedro, Pepe, Xabi Alonso, Adebayor e Di María. Vermelho: Di María.
Gol: Cristiano Ronaldo, aos 13min do primeiro tempo da prorrogação.

27/4/2011 - REAL MADRID 0 X 2 BARCELONA - LIGA DOS CAMPEÕES

Ali, chegávamos ao clímax. O jogo da coroação de Messi, da explosão de choro de Mourinho. Nove anos depois, os dois gigantes voltavam a se enfrentar nas semifinais da Champions. Em 2002, os galácticos do Real haviam levado a melhor. Em 2011, os tempos eram outros. O jogo do Bernabéu foi antecedido pela famosa coletiva de Guardiola, que falou que "dentro desta sala (de imprensa), Mourinho é o puto amo". O treinador foi ovacionado pelos jogadores ao voltar para a concentração - todos estavam fartos dos dardos lançados pelo português, sempre tentando condicionar as arbitragens e esquentar o ambiente.

Aos 6min do segundo tempo, Pepe foi expulso com vermelho direto por uma solada em Daniel Alves. Um lance muito polêmico e que, logicamente, condicionou o resto da partida. Com um a mais, o Barcelona, que já era melhor, dominou a partida, Messi fez dois gols e encaminhou a classificação para a final.

Depois do jogo, Mourinho explodiu com os seguidos "por quês", lembrando nomes de árbitros que teriam ajudado o Barça nas temporadas anteriores. "Se digo à Uefa o que sinto, minha carreira acaba hoje. Por que Pepe foi expulso?", questionou. E seguiu: "Guardiola ganhou uma Champions que me daria vergonha, com o escândalo de Stamford Bridge, e ganhará outra com o escândalo do Bernabéu. Espero que um dia possa ganhar uma Champions limpa, sem escândalos".

REAL - Casillas; Arbeloa, Sergio Ramos, Albiol e Marcelo; Pepe, Xabi Alonso, Lass Diarra, Ozil (Adebayor) e Di María; Cristiano Ronaldo.

BARÇA - Valdés; Daniel Alves, Mascherano, Piqué e Puyol; Busquets, Xavi e Keita; Pedro (Afellay), Messi e Villa (Sergi Roberto).

Árbitro: Wolfgang Stark.
Amarelos: Sergio Ramos, Arbeloa, Adebayor, Mascherano e Alves. Vermelhos: Pepe e Pinto (reserva).
Gols: Messi, aos 31min e aos 42min do segundo tempo.

20/4/2011 - BARCELONA 1 X 1 REAL MADRID - LIGA DOS CAMPEÕES

Com uma grande vantagem construída na ida, o Barcelona fez um jogo quase burocrático no Camp Nou para garantir a classificação. Um aguerrido Real Madrid chegou a assustar e voltou a reclamar da arbitragem - houve um gol legal de Higuaín que foi anulado e seria o 0-1. Kaká, que havia chegado ao clube junto com Cristiano, mas perdido espaço após tantas lesões, foi o titular.

Mourinho, suspenso pela Uefa e sem que houvesse um local seguro para que ele visse o jogo nas tribunas do Camp Nou, ficou no hotel. No fim, o Barça abriu o marcador, o Real empatou e, assim, o time de Guardiola passou para a final de Wembley - seria campeão em cima do Manchester United.

"Nos roubaram", fuzilou Casillas. "Tem que deixá-los jogar sozinhos", reclamou Cristiano Ronaldo. "O Real Madrid não sabe perder", concluiu Daniel Alves, do outro lado. Ao final dos quatro clássicos, o Real Madrid ficou com o álibi das arbitragens. Mas o time que entrou para a história foi o Barcelona, de Guardiola e do bom futebol.

BARÇA - Valdés; Daniel Alves, Mascherano, Piqué e Puyol (Abidal); Busquets, Xavi e Iniesta; Pedro (Afellay), Messi e Villa (Keita).

REAL - Casillas; Arbeloa, Albiol, Ricardo Carvalho e Marcelo; Lass Diarra e Xabi Alonso; Di María, Kaká (Ozil) e Cristiano Ronaldo; Higuaín (Adebayor).

Árbitro: Frank de Bleeckere.
Amarelos: Carvalho, Diarra, Xabi Alonso, Marcelo, Adebayor e Pedro.
Gols: Pedro, aos 9min, e Marcelo, aos 19min do segundo tempo.