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Noah Scheffel

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Construções Transcentradas: já ouviu falar?

Isis Broken e Aqualienn - Reprodução
Isis Broken e Aqualienn Imagem: Reprodução

04/07/2022 06h00

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Falar sobre transgeneridade ainda é uma novidade. Mas pouco a pouco as pessoas estão entendendo o que é ser uma pessoa trans, e que quem não é trans, é uma pessoa cis. Caso você ainda não esteja familiarizado, aqui vão conceitos iniciais para que você possa entender a potência do assunto que trago hoje.

Pessoas trans: pessoa que não se identifica de alguma forma com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento.

Pessoa cis: pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento.

E o grande problema da nossa sociedade para que a gente ainda tenhamos essas caixinhas de "pessoas trans" e "pessoas cis" é que o nosso gênero é imposto a nós com base na nossa genital de nascimento, quando, na verdade, genital é uma coisa e gênero não tem nada a ver com isso.

Enfim, dado o contexto inicial, eu gostaria de avançar um pouco a pauta e falar sobre "construções transcentradas". TRANScentrar é o ato de realizar algo junto à demais pessoas que também são trans.

Caso você ache um absurdo, eu gostaria que você refletisse quantas construções "CIScentradas" você já realizou durante a vida. Ou seja, aquelas que não tiveram a participação de nenhuma pessoa trans. Agora percebe que pra você é natural esse tipo de construção? Então, por que não olhamos também para este outro tipo?

Quando temos um grupo minorizado na sociedade, e este grupo consegue se organizar para realizar ações que fortaleçam sua existência, é mais do que importante que reconheçamos este ato poderoso e sejamos também agentes de visibilidade destas construções.

Ser uma pessoa trans numa sociedade que ainda é muito preconceituosa pode ser uma "viagem solitária", como diria nosso querido João W. Nery, um dos primeiros homens trans brasileiros a assim se identificar. Mas assim como João percebeu, uma rede transcentrada conseguia ser muito mais forte para chegar aos objetivos pelos quais ele lutava: a nossa existência.

O mais bonito que tenho visto nestas construções transcentradas não são "apenas" as redes para conquista de direitos, mas o pleno exercício de construir uma vida, projetos, trabalhos e, principalmente, construir afetos.

Eu pude conversar com a Isis Broken e o Aqualien, um casal transcentrado, que para além desta construção de afeto entre duas pessoas trans, nos mostram outras possibilidades de construções tão potentes e necessárias de visibilidade. Confere comigo o quão valioso foi este papo!

Noah: Eu gostaria de partir desta construção amorosa e transcentrada, pois acredito muito que relações assim possuem uma vibração de entendimento mútuo e apoio, para além do fato de o próprio acesso à afetividade para pessoas trans, que sempre foi muito negada a nós pela sociedade. Como vocês veem essa questão do acesso ao afeto enquanto pessoa trans?

Isis Broken: Se relacionar afetivamente se tornou complicado pra mim ao assumir minha identidade de gênero, percebi que comecei a ficar à margem dos corpos que não merecem ser amados, de alguma forma a cisgeneridade toma o poder do amor e afeto só pra eles, quando conheci Aqualien eu percebi que eu poderia ser amada e entendida como sou, é sempre uma troca de experiências, lógico que minha travestilidade atravessou vivências que o corpo de homem trans não vivenciou, mas acaba sendo uma troca de corporeidades, foi muito lindo e especial entender um corpo trans como o do meu marido gestando nosso filhe, então divergimos dos mesmos pontos, e transcentrar é a forma que temos de "hackear" o CIStema que tanto nos aponta qual é a forma certa de amar, e estamos aqui pra mostrar resistência afetiva, e provar que podemos sim amar e ser amades da melhor forma, e não de qualquer forma.

Noah: Vocês também romperam uma barreira social com relação à família, e construíram a de vocês. Vocês podem contar um pouco como isso se deu, e quais foram os principais desafios?

Isis Broken: É engraçado como passei tantos anos da minha vida acreditando em padrões sociais e familiares que foi imposto a mim desde a infância, a começar pelo fato de ter sido uma criança trans - elas existem - e durante toda a minha infância houve uma não construção de mulheridade e consequentemente a não construção da maternidade em mim, nunca me imaginei nesse lugar de mãe travesti progenitora, isso é algo tão especial e gigante, me sinto a frente de um novo movimento, hoje eu recebo várias mensagens de garotas trans que se dizem inspiradas com minha maternidade travesti, e que depois de perceberem o palpável passaram a acreditar nessa realidade, passou a ser uma verdade acreditável. Nossa família transcentrada se torna um pilar de uma nova sociedade, de novos não-padrões, que podem se tornar padrão por existir uma materialidade dessa realidade, o não-padrão também é um padrão a partir do momento que existe. Desafios foram muitos, principalmente com o recorte geográfico, começamos nossa família em Sergipe, no nordeste, lá tivemos que enfrentar várias barreiras, fomos o primeiros casal transcentrado de Sergipe a ficarem gravides, isso gera rompimentos de padrões e logo quem está detendo o poder vai querer dificultar os processos, mas não desistir é o meu padrão (risos).

Noah: E para além das barreiras sociais, vocês podem compartilhar como tem sido essa realização e o dia a dia de vocês, a partir deste lugar de felicidade?

Isis Broken: Nosso dia a dia é como o de qualquer outra família, é muito gostoso ter uma criança em casa, a gente sempre aprende tanto com Apolo, elu é uma criança incrível, muito amoroso e sorridente, estamos sempre vibrando a cada coisinha que ele faz, agora estamos introduzindo a alimentação e tá uma diversão só.

Aqualien: Apesar de eu nunca ter cogitado antes a possibilidade de ter um filho, eu sinto como se eu estivesse esperando por Apolo a minha vida toda de forma inconsciente, fui amadurecendo, passei por coisas que me prepararam para que hoje ele pudesse estar aqui, é como se tudo tivesse conectado de alguma forma. Não consigo mais lembrar como era a minha vida antes dele, como era acordar com um sorriso dele de bom dia, e toda vez que ele sorri pra mim assim que acordo, me sinto presenteado.

Noah: Fiquei sabendo que vocês estão em processo de lançamento de um filme, que se chamará "Apolo", com direção é de Tainá Müller e Fabi Winits, e que retrata um pouco do que vocês passaram na gestação. Vocês podem dar alguns spoilers sobre essa produção, sobre como foi ter esses registros realizados, e quando ela será lançada?

Aqualien: O que eu consigo dizer é que é um filme lindo apesar de mostrar as violências que sofremos na gestação, queríamos levar esse filme não só pela dor e também pelo amor, até porque ele irá carregar o nome de nosso filho. Então é um filme bem equilibrado, mostrando o amor de uma família transcentrada, nossos esforços pra trazer ele ao mundo, o parto e por aí vai. Ainda não temos uma data exata, está na pós-produção ainda, mas a previsão é sair ano que vem com toda certeza, também ainda não sabemos qual a plataforma de streaming estará, mas estará em alguma das que a gente já conhece.

Noah: Sei que vocês são artistas, e recentemente lançaram um clipe. Podem contar mais sobre a potência de poder transcentrar essa construção, e falar mais sobre o clipe e a música também? E sobre planos futuros!

Aqualien: Eu costumo dizer que é muito importante para nós pessoas trans transcentrar o maior tipo de relações que a gente puder e na arte não pode ser diferente. O mundo da música e da arte no geral ainda é MUITO transfóbico, infelizmente, não é por falta de talento. Então acredito que cada vez mais devemos criar redes entre os nossos para nos fortalecer e fazer nossa própria cena, já que eles não nos querem na deles, é necessário a gente se unir, mesmo na arte para movimentar essa estrutura cisnormativa dentro da música brasileira e esse clipe é muito potente pois retrata a história de dois artistas trans e que um deles se trata de um homem grávido. O que eu mais gosto na história dessa música e desse clipe é que durante a escrita dela se iniciou um clico (nosso relacionamento surgiu a partir desse feat) e se encerrou outro, porque quando a gente gravou o clipe eu estava no último dia de gestação e com o barrigão, prestes a ter nosso filho.

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Vemos em Isis e Aqualien as possibilidades de infinitas construções transcentradas, que desfazem o pensamento comum que pessoas trans não estão criando suas próprias histórias.

É importante que nossa sociedade tenha acesso a mais histórias como essa, para que possamos de fato ver as pessoas trans nas nossas vidas, e possamos dar visibilidade a algo que não reparamos, ou não damos o devido valor.

Construções transcentradas são extremamente valiosas e poderosas, pois desconstroem o preconceito do imaginário social a respeito das nossas existências. E você pode fazer o seu papel aqui: buscar conhecer e apreciar tais construções!