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Mente Natural

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sonho infantil de riqueza

Patricia Santos/Folhapress
Imagem: Patricia Santos/Folhapress

Emersom Karma Konchog

12/06/2022 06h00

Hoje é bem predominante a visão de que esta é uma era de progresso sem precedentes: muitas pessoas acessam a internet, podem comprar coisas que antes não podiam, com tanto entretenimento, amplo acesso à informação, acionamos eletrônicos com a voz e tem até gente passeando no espaço. Nessa visão de mundo, as crises que se desdobram diariamente seriam mais como acidentes de percurso; ou então, coisas como pobreza e exploração seriam elementos intrínsecos à sociedade humana, um aspecto desagradável mas sem uma solução de fato.

Vemos esse mundo todo dia em anúncios, na mídia, em vídeos na internet, em conversas com amizades? Mas um fato incômodo é que sabemos que há muito mais sofrimentos do que deixamos aparecer nessa bolha de realidade.

Por exemplo, no Brasil, a renda média é pouco mais que um salário-mínimo. Mas boa parte ganha muito menos, já que essa é uma média total — no Norte e Nordeste, por exemplo, a renda média é de R$ 850.

No mundo, se dividirmos a renda total de 70 trilhões de dólares (anuais) pelos sete bilhões de habitantes, a renda de cada pessoa seria US$ 10 mil/ano (cerca de R$ 4.000/mês). Pode parecer bastante, mas esse valor sobe devido à renda de pessoas muito ricas: em 2018, 82% de todo o enriquecimento no planeta foi para o 1% de bilionários.

Mesmo levando em conta essa renda média mundial inflada, nos EUA, por exemplo, 10 mil dólares por ano é um valor no limite do que é considerado "pobreza". Obviamente, em muitos lugares do planeta, como aqui, somos mais pobres. As pessoas mais necessitadas do mundo tentam sobreviver com 2 dólares por dia (R$ 300/mês).

O ponto de todos esses números é apontar um fato: a civilização humana é miserável. Se o projeto humano for garantir bem-estar, somos um fracasso épico.

Se toda a destruição e exploração dos sistemas político-econômicos predominantes garantisse o bem-estar das pessoas, talvez fosse possível discutir a validade dessa abordagem. Mas não. Ficando apenas no meio ambiente, causamos uma extinção planetária em massa e uma emergência climática para quê? Para deixar pessoas passando fome (15% da população brasileira), sem saúde, educação etc.

Como menciona o autor Umair Haque,não adianta muito ficarmos sonhando com consciência artificial, ou a fusão da mente com computadores, mantendo nosso atual projeto de miséria e destruição:

"Você realmente acha que civilizações inventam poções de imortalidade e amigos sencientes mágicos com Inteligência Artificial ou mentes se fundindo na nuvem antes de aprenderem como chegar à independência do combustível fóssil? Enquanto sua eficiência energética ainda está no nível de um motor de combustão? Enquanto suas democracias nem conseguem funcionar e estão decaindo no fascismo, porque o planeta está morrendo graças a tudo isso?"

Acredito que acordarmos desse sonho infantil de desenvolvimento supremacista será uma etapa fundamental para regenerar nosso modo de existir como espécie. Mas o fato de que a civilização humana se baseia essencialmente em miséria não é muita novidade. Seu sofrimento coletivo é relativamente bem visível. A questão é: por que isso é aceito como normal?

Boa parte dessa normalização se deve à desconexão que cultivamos em relação a pessoas vivendo em lugares diferentes, com culturas e ideologias diferentes etc. O simples reconhecimento da humanidade que compartilhamos se tornou um desafio. Acho que não é à toa que no imaginário coletivo haja tanta obsessão com forças não humanas como zumbis, alienígenas, robôs assassinos, espíritos destrutivos ou até "comunistas" malignos — algo inumano tomou conta de nós.

Se não somos capazes de sentir conexão nem com outras pessoas, mais difícil ainda é reconhecer o mundo vivo como algo do qual não temos como nos separar.

Outro fator da normalização da desgraça provavelmente é a encrustada ideia de que a natureza ou o mundo possuem uma "crueldade" inata: "Vivemos sob a lei da selva, do mais forte, a natureza é um banho de sangue e selvageria. O mundo é assim pois essa é a nossa natureza."

Eu acredito que não: a natureza humana ou da vida segue princípios harmônicos. Por mais que não falte competição e predação na natureza, em um contexto maior, isso ainda faz parte de uma auto-organização cooperativa. Caso imaginemos cada organismo como uma entidade separada de tudo mais, aí sim, é possível enxergar indivíduos competindo e lutando pela própria vida. Mas isso é apenas um dos diversos aspectos de uma rede maior interligada e perfeitamente coesa.

Lembro de um diálogo de um filme predileto, "Contato" (1997), em que um cientista carreirista tenta justificar sua trapaça:

— Eu gostaria que o mundo fosse um lugar onde a justiça fosse o ponto de partida, onde o tipo de idealismo que você mostrou fosse recompensado e não, explorado. Infelizmente, não vivemos nesse mundo.

— Engraçado... Eu sempre acreditei que o mundo é o que fazemos dele.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL