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Paula Gama

REPORTAGEM

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Caminhões arqueados: 'máquinas de matar' circulam livremente nas estradas

Caminhões arqueados continuam circulando pelas estradas brasileiras - Reprodução
Caminhões arqueados continuam circulando pelas estradas brasileiras Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/10/2022 04h00

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A moda dos caminhões arqueados, denunciada por UOL Carros em janeiro deste ano, permanece em alta nas estradas. Em viagens por cinco estados brasileiros, entre abril e outubro, contabilizei mais de trinta veículos transitando com a traseira elevada e a frente rebaixada, um risco elevadíssimo de decapitação para motoristas que batem atrás, em caso de acidente.

Seis dias após a primeira denúncia da nova moda, feita por esta coluna, um acidente envolvendo dois caminhões arqueados chocou o país. Na ocasião, Gerson Mattos e sua esposa, Patrícia Abreu, morreram ao colidir na traseira do caminhão arqueado de seu pai, Jetro Mattos.

Após a tragédia, a Polícia Rodoviária Federal apertou o cerco contra os veículos modificados durante um período. A ação, porém, foi paralisada meses depois a pedido do então ministro da infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos), que concorre ao governo de São Paulo, diante de reclamações de caminhoneiros pelas abordagens.

O policial rodoviário federal Sousa Dantas, chefe da divisão de Policiamento Trânsito de Brasília, esclareceu que, para estar dentro da lei, a elevação da traseira do caminhão não pode ultrapassar dois graus, o que equivale a uma altura de 3,5 centímetros - há caminhões arqueados cuja altura da traseira chega a dois metros. Mesmo com a altura correta, a alteração deve constar no Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV).

A traseira elevada, além de deixar o caminhão instável, aumenta a gravidade dos acidentes para o veículo que bate atrás - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
A traseira elevada, além de deixar o caminhão instável, aumenta a gravidade dos acidentes para o veículo que bate atrás
Imagem: Reprodução Instagram

Sousa Dantas explicou que, antes da ação direcionada, havia duas formas de um policial conduzir a situação ao encontrar um caminhão fora do padrão: se, na medição, a altura passasse de 3,5 cm por pouco, o caminhão era liberado, a multa de R$ 195,23 era aplicada, o documento era retido e o motorista tinha um prazo para regularização. Se a diferença representasse um risco para a segurança viária, no entender do policial, o veículo era retido até o ajuste.

Durante a ação, no entanto, os PRFs recolhiam qualquer altura fora do previsto por lei, mesmo que passe por pouco. "Quando você retira o veículo de circulação por alguns dias, o motorista infrator fica mais pensativo e não repete a conduta", avaliou o PRF.

Caminhões arqueados estiveram perto do fim

Em janeiro, um acidente com dois caminhões arqueados deixou dois mortos - Reprodução - Reprodução
Em janeiro, um acidente com dois caminhões arqueados deixou dois mortos
Imagem: Reprodução

No período de endurecimento da fiscalização, UOL Carros entrevistou caminhoneiros, embarcadores e postos de molas que diziam que, devido à pressão da PRF, a moda iria acabar. Os caminhoneiros relataram que não podiam mais trafegar com o caminhão alterado, pois a PRF estava "marcando em cima".

Já os embarcadores evitavam contratar esses veículos devido à demora e o risco em perder a carga. Nas redes sociais, se multiplicaram relatos de influenciadores dizendo que iriam voltar com o caminhão às condições originais.

Foi no dia 18 de fevereiro que uma fala do então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, mudou o cenário. "Estamos vendo que realmente há um excesso de rigor, o pessoal está se prendendo em coisas que, embora estejam na norma, às vezes não fazem o menor sentido, não ocorrem contra a segurança. No final só aborrecem e geram multas desnecessárias, perda de tempo e fiscalizações que aborrecem", afirmou Tarcísio.

Em conversa com um grupo de caminhoneiros e registrada no áudio divulgado nas redes, Tarcísio de Freitas afirmou considerar as ações da PRF como excesso de rigor por parte da polícia. O então ministro disse ter combinado com o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, a abertura de um grupo de trabalho para revogar normas de trânsito consideradas desnecessárias.

"Combinei com o diretor-geral da PRF [Silvinei Vasques] que montaremos um grupo de trabalho para fazer um 'revogaço' de normas, deve revogar uma série de normas vigentes no Contran (Conselho Nacional de Trânsito) para eliminar o que está enchendo o saco, gerando autuação e não contribui para a segurança", diz Freitas.

Além do "revogaço", Tarcísio afirmou que a PRF iria "dar um tempo nas fiscalizações desnecessárias", como a de caminhões arqueados. "Vamos focar na fiscalização daquilo que é importante: bebida, rebite, essas coisas. Mas esse negócio de ficar vendo altura de traseira de caminhão, fita refletiva e etc, acho que não é o caso agora nesse momento."

Questionado pela reportagem sobre a veracidade e o teor das declarações, o Ministério da Infraestrutura confirmou a gravação e que um grupo de trabalho está sendo criado, sem entrar no mérito sobre a alçada da pasta sobre o tema. Apesar da participação, no entanto, a fiscalização das estradas não faz parte do escopo do Ministério da Infraestrutura, sendo responsabilidade do Ministério da Justiça - que foi questionado por UOL Carros, mas não se posicionou sobre o assunto.

Ações foram canceladas após fala de Tarcísio, diz policial

UOL Carros procurou a PRF para saber se houve uma redução no número de autuações de caminhões arqueados após a fala de Tarcísio de Freitas, em fevereiro deste ano. No entanto, em diversas ocasiões a polícia afirmou que não há como contabilizar as infrações. A PRF explica que levantar a traseira do caminhão é considerado infração dentro do artigo "conduzir o veículo com a cor ou característica alterada". Por isso, não é possível quantificar quantas autuações foram aplicadas somente para essa alteração.

No entanto, membros da Policial Rodoviário Federal, na condição de anonimato, relataram à reportagem que, quando o vídeo ganhou repercussão, havia operações específicas para fiscalização de caminhões que estavam previstas, mas foram canceladas. "Nada disso aparece no papel, é claro, mas ficou evidente que foi por causa da fala do Tarcísio", relatou um oficial que trabalha no Paraná.

Em entrevista ao UOL Carros, Marcelo Azevedo, vice-presidente da Fenaprf, federação dos policiais rodoviários federais, afirmou que a instituição observou que, depois do vídeo, a classe ficou mal vista pelos caminhoneiros.

"Foi como se os policiais estivessem pegando no pé, como se a fiscalização não fosse por segurança viária. De certa forma, isso dificulta nosso trabalho, pois estimula os caminhoneiros a fazerem essa alteração e nos desmoraliza", lamentou.

O Ministério Público do Rio de Janeiro abriu um inquérito para apurar a recomendação do então ministro para que a PRF fizesse vista grossa às infrações dos caminhoneiros. Segundo o MPRJ, dezenas de documentos estão sendo analisados, e o primeiro objetivo é saber se a fala do ex-ministro impactou no andamento das operações.

"Temos que estar atentos a quaisquer circunstâncias ou indícios que tenham potencialidade para comprometer a regularidade no desempenho das atividades policiais. Temos o dever de contribuir para que a atividade policial tenha eficiência, mas que seja exercida dentro do quadro legal como exige o Estado de Direito. Não se trata, neste momento, de investigar esta ou aquela pessoa. Mas, sim, de, ante o que chegou ao nosso conhecimento, colher procedimentalmente elementos que elucidem os fatos. Permitindo assim que a PRF continue a exercer seu papel como órgão de Estado", pontua o procurador da República Eduardo Benones, que conduz as investigações.

O risco do caminhão arqueado

Segundo informações de Rodrigo Kleinubing, engenheiro especialista em acidentes de trânsito, caminhões desse tipo são verdadeiras máquinas de matar. Isso porque, alterando características originais, não é mais possível garantir os mesmos parâmetros de estabilidade e frenagem do veículo.

"A alteração mexe com dois itens que não devem ser mudados: a suspensão e o sistema de freios. Mexer no projeto original coloca em risco a segurança do caminhoneiro e de outras pessoas que transitam pelas estradas".

Rodrigo alerta que os acidentes envolvendo veículos de carga com traseira elevada podem ser muito mais graves, considerando o grande número de batidas de carros de passeio atrás de caminhões nas rodovias devido à diferença de velocidade média.

"Elevar a traseira incentiva o fenômeno de o carro entrar sob o caminhão em caso de batidas. Tínhamos esse problema sério no Brasil, que foi resolvido com a obrigação das placas retrorrefletoras e dos para-choques. Esse tipo de acidente é altamente letal porque quando um carro entra embaixo do caminhão é muito comum que os passageiros da frente sejam decapitados", alerta o especialista.

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