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Rico Vasconcelos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uganda vai mostrar ao mundo que LGBTfobia é combustível da epidemia de HIV

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

31/03/2023 04h00

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Uganda, um pequeno país situado ao leste da África Subsaariana, apareceu em todos os noticiários do planeta na última semana e se tornou motivo de preocupação do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, o Unaids.

A razão da mobilização é mais do que justa. Uganda, que era tido como um dos países africanos com enfrentamento exemplar da epidemia de HIV/Aids, em nome do conservadorismo, está prestes jogar fora os avanços conquistados ao longo de décadas.

No início da epidemia de HIV, na década de 1980, o país chegou a registrar prevalências dessa infecção na população adulta próximas de 30%. De lá para cá, como resultado de um gigantesco empenho em saúde pública que contou com a participação e o financiamento de países europeus e Estados Unidos, Uganda conseguiu ampliar de forma impressionante o acesso à testagem, à prevenção e ao tratamento do HIV/Aids.

Só para se ter ideia do sucesso da resposta de Uganda ao HIV, o país é o terceiro no continente em número de pessoas em PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV), com cerca de 350 mil usuários, e foi um dos quatro únicos países da África a atingir as metas 90%-90%-90% propostas pelo Unaids para acesso ao diagnóstico, tratamento e controle da infecção.

Com tais políticas públicas e muita perseverança, o país chegou a 2021 celebrando a redução em 10 anos de 39% nos novos casos de HIV, e a queda da prevalência da infecção na população geral para 5,2%.

Tudo ia bem em Uganda, até que, na semana passada, seu parlamento aprovou um projeto de lei que propõe pesada criminalização da diversidade sexual. De acordo com o projeto, uma pessoa que se identificar como gay, lésbica, bissexual, não-binária ou transexual será punida com 20 anos de prisão.

Aqueles que derem suporte a essas pessoas, como um proprietário que alugar seu imóvel um inquilino LGBT, um advogado que optar por representá-lo, uma empresa que der a ele emprego ou ainda um canal de comunicação que veicular uma entrevista realizada com ele, ao invés de denunciá-lo, serão todos punidos também.

É verdade que o país já tinha desde a década de 1950 uma legislação LGBTfóbica que previa inclusive prisão para pessoas que fossem encontradas praticando relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. No entanto, o projeto de lei atual traz um inédito endurecimento das punições, chegando a prever a pena de morte para "relações homoafetivas realizadas em contexto de violência sexual, de entorpecimento da parceria e envolvendo sexo com crianças, deficientes ou incesto".

Com quase 90% da população se considerando religiosa e cristã, Uganda sempre foi um país conservador e há cerca de alguns anos já teve outras tentativas fracassadas de implementação de uma legislação ainda mais homo e transfóbica. Mas dessa vez fica evidente pelo texto da lei, que mistura conceitos como diversidade sexual, estupro, pedofilia e incesto, a presença do viés preconceituoso e equivocado da proposta.

Se sancionada pelo presidente Yoweri Museveni, a lei promoverá marginalização ainda maior de populações já bastante vulnerabilizadas ao HIV/Aids, reduzindo assim seu acesso aos programas de saúde pública citados acima. Em Uganda, a prevalência de infecção por HIV entre homens gays já é de 13,7%.

De acordo com a lei, por exemplo, quando um homem gay for a um serviço em busca de PrEP, se não o denunciar, o profissional de saúde que o atender será também preso.

O que se espera então após a implementação dessa lei é o recrudescimento da epidemia, piorando, portanto, a situação da saúde pública para todos os cidadãos do país.

No mundo já temos vários exemplos de países que testemunharam piora dos indicadores de HIV/Aids após a implementação de leis que criminalizavam as pessoas LGBTs ou que viviam com HIV/Aids. Foi por isso que entidades governamentais e ONGs de todo o planeta se mobilizaram nos últimos dias pedindo ao presidente de Uganda que a nova lei não saia do papel.

O caso de Uganda é um exemplo extremo de como a LGBTfobia pode funcionar como combustível para a epidemia de HIV/Aids, mas em menor escala, toda e qualquer atitude que discrimine LGBTs provocará efeitos no mesmo sentido.

De forma didática, Uganda vai mostrar ao mundo que a LGBTfobia pode disseminar o HIV mais que o sexo sem camisinha, e nos convida a refletir sobre a forma com que estamos lidando com o tema no Brasil, sobre as suas consequências e suas soluções.