Lúcia Helena

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Reportagem

O que precisamos saber sobre o câncer na população negra

Nos Estados Unidos, os números escancaram uma desigualdade que nunca teve cabimento e da qual, tardiamente, a Medicina começa a tomar consciência para tentar resolver.

Lá, 13% da população é negra. Mas, segundo a Asco (American Society of Clinical Oncology), 22% dos casos de tumores em adultos jovens, isto é, abaixo dos 50 anos, são nesse grupo — que, em qualquer idade, morre duas vezes mais de câncer do que os americanos brancos.

Independentemente de aspectos ligados à vulnerabilidade social que estejam por trás da quantidade de mortes, não é fácil responder por que alguns tumores são mais frequentes em negros ou garantir que os tratamentos são eficazes em pé de igualdade. Explico a razão: nas pesquisas médicas sobre câncer nesse país, apenas 4,5% dos voluntários são negros. E na maior parte do mundo não é de outro jeito.

Mergulhar nesse assunto é fundamental. Ainda mais em um país como o nosso, que tem uma proporção muito diferente entre a sua gente: 56% dos brasileiros são negros, isto é, pretos e pardos. E esses "56%" foram repetidos várias vezes em duas sessões muito bem-vindas sobre diversidade no 24º Congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, o SBOC 2023, realizado na semana passada no Rio de Janeiro.

"Uma das coisas mais importantes é mostrar à comunidade negra, muito antes de ela se tornar paciente, quais são os seus fatores de risco e o que ela pode fazer para preservar a sua saúde. Precisamos propagar informação. Afinal, informar é dar poder e autonomia", diz a médica Ana Amélia de Almeida Viana, do Comitê de Diversidade da SBOC.

Oncologista da Rede D'Or, em Salvador, e do Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia, ela observa: "No Brasil, seja por problemas de escolaridade ou por outras questões que são barreiras para pessoa a se informar, muitos negros ignoram que fazem parte de grupos de risco para alguns cânceres."

Câncer de próstata

Existem diferenças moleculares entre as diversas etnias que compõem a humanidade. Elas podem justificar por que uma doença é mais comum em uma do que em outra. Todos nós, de todos os tons de pele, temos pontos biologicamente mais frágeis.

A ciência já sabe, por exemplo, que homens negros correm maior risco de serem diagnosticados com um tumor de próstata e que, neles, esse câncer tende a ser mais agressivo. Por isso mesmo, sociedades de oncologia de vários países recomendam que eles comecem a fazer exames, como a dosagem do PSA (o antígeno prostático específico que, se elevado, acende uma luz amarela) cinco anos antes em relação aos homens brancos. Ou seja, aos 45 anos.

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Alguns tumores de próstata são indolentes, é fato. Isso quer dizer que o homem morre com ele, mas não por causa dele. E, quando é assim, hoje em dia os médicos não saem operando de cara e, sim, prescrevem o que chamam de vigilância ativa. Ficam de olho para checar se o tumor é indolente mesmo ou se irá mostrar suas garras em um dia qualquer.

Pois bem: em um estudo publicado no periódico científico Jama se viu que a progressão do câncer de próstata que parecia indolente foi 11% maior em negros que estavam em vigilância ativa do que em brancos. Isso só comprova que eles devem tomar mais cuidado.

"Precisamos alardear aos homens negros que eles precisam ir com maior regularidade ao seu clínico, falar de sua história, se alguém de sua família já teve câncer de próstata ou não para, então, definir junto com o médico se é necessário fazer algum exame", diz a doutora Ana Amélia.

Câncer de mama

"A mulher negra, por sua vez, não tem mais câncer de mama do que a mulher branca", conta, ainda, a médica baiana. "Na verdade, o número de novos casos entre as negras, se a gente for ver, é até um pouco menor. Mas elas morrem mais. A mortalidade é 40% maior, segundo dados americanos. Já os dados brasileiros estimam uma mortalidade 25% maior."

Uma das explicações é que as negras têm mais tumor triplo negativo, considerado um tipinho pra lá de agressivo. Ele tem esse nome porque suas células malignas não possuem receptores para estrógeno, nem para progesterona, nem para uma proteína chamada HER2, substâncias responsáveis pelo crescimento de outros tipos de tumores mamários. Esses receptores são alvos de medicamentos potentes. Mas, sem qualquer um dos três para ficar sob a mira do tratamento, é complicado conter o avanço do câncer de mama triplo negativo.

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E mais um detalhe, como lembra a doutora Ana Amélia: "As mulheres negras têm uma incidência maior de diagnóstico abaixo dos 40 anos de idade". Sim, o tumor de mama triplo negativo costuma aparecer mais cedo. "As jovens negras precisam se atentar muito mais precocemente à saúde de suas mamas, jamais deixando de marcar consultas regulares no ginecologista."

Aliás, a proporção de negras na nossa população, segundo a oncologista, é um dos motivos pelos quais as sociedades médicas brasileiras recomendam a mamografia anual a partir dos 40 anos de idade, apesar de o SUS (Sistema Único de Saúde) só oferecê-la a cada dois anos para mulheres com mais de 50. "No Brasil, cerca de 30% dos tumores de mama são flagrados em pacientes mais novas do que isso", explica a doutora.

O importante, na opinião da oncologista, é a mulher negra ir ao médico na onda do Outubro Rosa. — seja para fazer a mamografia ou a ultrassonografia, seja apenas ver como anda a sua saúde em geral. Este passo na direção de um consultório seria fundamental. "O problema é que, quando chega esse mês, é raro ver mulheres negras representadas nas campanhas. Daí que muitas têm dificuldade para enxergar que a mensagem, ali, é para elas também."

Em parte por essa falta de entendimento, o diagnóstico do câncer de mama nas mulheres negras também tende a ser tardio. "Aí, se chegam com um caso avançado no sistema público de saúde, onde mais de 70% das usuárias são pretas e pardas, o tempo para iniciar o tratamento nem sempre é o preconizado. E isso também ajuda a entender a diferença na mortalidade."

Sarcoma de Kaposi

Esse é um câncer que acomete as paredes dos vasos sanguíneos e que dificilmente surge em quem está com o seu sistema imunológico no prumo. "Mas aí é que está: se olharmos para as pessoas que vivem com HIV, o risco de desenvolver a doença Aids é sete vezes maior entre os negros", diz Ana Amélia. "No caso, por falta de acesso a cuidados essenciais de saúde. E o sarcoma de Kaposi costuma aparecer em quem tem Aids."

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Melanoma

Não, quando se trata desse tumor agressivo de pele, a incidência não é maior em pessoas negras, mas vale o parágrafo. Isso porque, de acordo com o Inca (Instituo Nacional de Câncer), 10% dos melanomas são nessa população. E voltamos ao ponto: falta informação e sobra o mito de que a pele negra não precisa de filtro solar ou, vá lá, que ela não precisa de fatores mais altos de proteção e dos mesmos cuidados, como evitar se expor em horários em que os raios não perdoam a pele de ninguém.

Câncer de estômago

Segundo a doutora Ana Amélia, o número de novos casos desse tumor também vem crescendo na população negra e ela desconfia que isso aconteça por causa da Helicobacter pylori. Essa bactéria, que consegue sobreviver no ambiente ácido e hostil do estômago, está por trás de gastrites e úlceras. Estudos mostram, porém, que 1% dos indivíduos infectados por ela acaba desenvolvendo lesões malignas.

"Por sua vez, a gente sabe a infecção por H. pylori é frequente em cenários onde muitas pessoas vivem em uma mesma casa, ou seja, em lugares onde a densidade populacional é grande. E essa é uma realidade mais comum entre os negros", nota a médica.

O que temos de extirpar

O câncer de estômago serve para a gente refletir: até que ponto alguns tumores são mais frequentes na população negra porque há uma razão biológica, as tais diferenças moleculares, e até que ponto determinantes sociais pesam nessa história?

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"Para dar outro exemplo, mulheres negras sofrem mais de obesidade e ela, por sua vez, é um fator de risco importante para diversos tipos de câncer. Mas será que pessoas pretas e pardas têm maior tendência a ganhar peso ou será que elas consomem alimentos ultraprocessados, que custam mais barato, mas que são altamente calóricos e com baixa qualidade nutricional?"

Não há respostas claras e — de novo — porque faltam estudos sobre câncer com uma participação mais expressiva de pacientes negros. "A tendência maior a desenvolver determinados tumores, que todos diziam ter uma razão biológica, e a mortalidade mais elevada podem ter muito mais a ver com falta de acesso à prevenção e ao próprio sistema de saúde", pensa a médica. "Precisamos de mais pesquisas até para mostrar isso e buscar solução."

O verdadeiro imperador de todos esses males talvez seja o racismo que, afinal, não inclui representantes de 56% de nós, brasileiros, nem sequer nas pesquisas médicas. E, devemos lembrar, o racismo não foi criado por negros. Achar que a cura desse "câncer social" não é responsabilidade dos brancos é como culpar o pneumologista que flagra um tumor de pulmão porque você fumou a vida inteira.

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