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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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'Tive herpes-zóster duas vezes depois da covid-19': entenda o possível elo

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista de VivaBem

28/03/2023 04h00

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O primeiro episódio foi no auge da pandemia, no início de 2021: "Senti uma dor na lombrar e, depois disso, surgiu um cobreirinho bem ali", lembra-se a jornalista e escritora Ana Célia Aschenbach. O diminutivo era enganador: não parecia algo tão grande para o tormento que causaria.

Cobreiro é um jeito de se referir ao desenho que pequenas bolhas riscaram em sua pele, como se fosse o rastro de uma cobra. Mas, na verdade, o traçado das feridas denuncia o exato trajeto percorrido pelo vírus varicela zóster por um nervo sensitivo logo abaixo. Sim, o mesmo vírus da catapora que, com certeza, Ana Célia teve um dia.

Não é todo mundo que se livra dele de vez. Calcula-se que entre 20% e 30% das pessoas que tiveram essa infecção na infância ou em qualquer outro momento da vida apresentarão o herpes-zóster anos depois se não se vacinarem contra essa doença. E ela é indescritivelmente dolorosa.

"A dor foi se tornando tão intensa da cintura para baixo, dilacerante, que eu pensei que estava ficando paralítica", conta Ana Célia. "Por isso, corri ao pronto-socorro."

Ali, ela foi medicada, inclusive com uma pomada de aciclovir, nome do princípio ativo de um antiviral que, usado sem perda de tempo, deixa o varicela zóster acuado, interrompendo o seu passeio pelo nervo e o avanço da lesão.

Ana Célia também ouviu do médico que o melhor a fazer era esperar um ano e tomar a vacina contra o herpes-zóster. Mas, quando passou a experiência sofrida, o assunto caiu no completo esquecimento. Ela acabou não correndo atrás do imunizante.

"Disso eu me arrependo amargamente", revela. "Daí por que queria tanto contar a mais pessoas o que aconteceu." Neste ano, o herpes-zóster voltou. E voltou como nunca, porque a dor, desta vez, está custando a ir embora. Ana desenvolveu uma neuralgia pós-herpética, uma espécie de dor fantasma. O vírus não está mais em ação. A lesão na pele já sarou. Mas o sofrimento permanece.

Ana Célia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Teria a ver com a covid-19?

Na sexta-feira 17 de fevereiro, véspera do Carnaval, Ana Célia sentiu um ardor pinicante na região lombar. "De cara, reconheci. Por isso, procurei não titubear", diz ela. "Passei a mesma pomada que tinha usado da outra vez e achei que tudo bem porque a lesão era menorzinha."

Dois dias depois, porém, no domingo do feriado, ela não conseguia se levantar nem sequer para ir ao banheiro. "Fui parar no hospital de novo, onde me prescreveram uma quantidade imensa de medicamentos", conta. "Estou usando corticoides, remédios para dor e outros para aumentar a minha imunidade."

Por que o zóster acontece

A queda da imunidade, aliás, é a explicação comum. No primeiro contato, o vírus da varicela só causa a catapora. Daí, as defesas reagem formando anticorpos e ele, intimidado, recua. Mas tem, como outros membros da família Herpesviridae, o dom de se integrar ao genoma das nossas células.

Então, enquanto as lesões da catapora secam, ele corre para os gânglios nervosos, que são um agrupamento de neurônios nos nervos periféricos. Fica ali parado até que, por algum motivo, diminui a quantidade de anticorpos que o mantinham na moita.

Isso pode acontecer porque a gente tende a perder anticorpos especificamente contra esse vírus com a idade — eis o motivo de o herpes-zóster ser mais comum a partir dos 50 anos. Ana Célia acaba de completar 57.

Ou pode acontecer de alguém passar por estresse ou ter uma rotina menos equilibrada, levando a imunidade a cair. Ainda que seja uma queda sutil, o varicela é capaz de tirar proveito.

Reativado, não tem forças para se espalhar pelo corpo provocando uma nova catapora. Mas fica vagando pelo nervo mais próximo até a produção de anticorpos subir de novo e chutá-lo de volta ao gânglio.

A questão da queda de imunidade, contudo, deixa Ana Célia cismada. Sua rotina, que a gente vê nas fotos, é pra lá de saudável. A começar pela opção, há alguns anos, de sair da agitada São Paulo para morar na montanha, em Atibaia.

"Todos os dias, percorro uma trilha de 4 quilômetros a pé, ando outros 7 quilômetros de bike e faço remo", descreve. "Sem contar o pilates duas vezes por semana. Tenho prazer em me exercitar, o que melhora até o meu humor na menopausa."

Ela dorme e acorda cedo. Admite que anda com dificuldade para continuar no sono e, em vez de brigar com os travesseiros, sai passeando com Paco e Madaleno, seus dois cachorros, admirando o amanhecer.

"Também não aconteceu nenhum estresse nos últimos tempos", pensa. "Ao contrário, quando o herpes-zóster ressurgiu, tinha acabado de voltar de 20 dias de férias, cercada de amigos na Bahia."

O marido, o diretor de arte Silas Botelho, pesquisou e encontrou uma possível explicação: seria por que Ana Célia teve covid-19? "Peguei a covid pela primeira vez no réveillon de 2021 para 2022", recorda-se. "E peguei uma segunda vez em julho do ano passado, quando foi muito mais suave porque já estava com todas as doses da vacina."

Ana Célia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Não se descarta uma ligação

Existem, de fato, estudos apontando que os casos de herpes-zóster aumentaram durante a pandemia. "Mas, para a Medicina, é difícil tirar conclusões de toda e qualquer associação temporal, porque ela é sempre bagunçada", comenta Max Igor Lopes, médico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), onde coordena o Ambulatório de Doenças Infecciosas.

Ele explica o que quer dizer com "bagunça", usando como exemplo o surto de ômicron no ano passado: "Em determinado momento, entre 50% e 60% da população brasileira estava infectada por essa variante do coronavírus", diz. "É impossível separar quais acontecimentos, de uma montanha de eventos ocorridos com essa enorme quantidade de gente, seriam consequência direta da infecção."

Max Lopes lembra, ainda, que há uma sazonalidade nos casos de herpes-zóster. "Eles não acontecem de maneira igual o ano inteiro", conta. "Geralmente, se concentram no período em que também aparecem mais episódios de catapora." No Brasil, o auge é de setembro até o final do ano.

A hipótese é de que a pessoa entraria em contato com alguém com catapora e o vírus desse indivíduo ativaria o varicela que estaria escondido nos gânglios nervosos. "Portanto, se a onda de ômicron aconteceu nessa época, não dá para diferenciar o que ela própria causou e o que foi coincidência, por causa dessa sazonalidade", informa.

Uma coisa é certa: infecções virais de maneira geral podem desestabilizar o sistema imunológico temporariamente, criando brechas para o varicela zóster reaparecer do nada. "E, no caso da covid-19, em alguns indivíduos esse desbalanceamento das defesas pode durar mais de ano, o que seria um possível elo. Ainda não dá para dizer nem que sim, nem que não", afirma o infectologista.

A vacina da covid-19 favoreceria o zóster?!

Também existem estudos questionando se os casos de herpes-zóster não aumentariam por causa da vacina de covid-19, relatando um ou outro episódio, especialmente com a plataforma de RNA mensageiro, como a da Pfizer.

A explicação seria que ela provocaria uma resposta mais forte e efetiva do sistema imunológico contra o coronavírus e isso, nos primeiros dias, não deixaria de ser uma turbulência nas defesas.

"Em tese, é uma hipótese plausível", reconhece o doutor Max Igor Lopes. "No entanto, muitos dos casos relatados foram em idosos, que talvez tivessem o herpes-zóster por outros motivos. Mas, se acontecer algo assim, será até uns quinze dias após a vacinação", explica. Ou seja, não seria justificativa para casos como o de Ana Célia.

"Seja como for, o abalo nas defesas causado pela covid-19 é intenso e nem se compara ao provocado pela vacina", reforça o infectologista. Ou seja, a infecção pelo coronavírus propriamente dita é que pode ter algum envolvimento.

Para calar o burburinho, em novembro do ano passado cientistas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, publicaram no JAMA um estudo com mais 2 milhões de indivíduos vacinados contra a covid-19. Eles não viram qualquer associação com um aumento no risco do herpes-zóster. Tire isso da mente.

Quando a dor não passa

Nas últimas semanas, Ana Célia sentiu vontade de chorar por causa da dor que brota na lombar e desce castigando as pernas. "Se fico muito tempo de pé ou se tento caminhar, meu corpo pede para se deitar", diz.

Noutro dia, ela se sentiu a pessoa mais feliz do mundo porque conseguiu remar. Mas, na manhã seguinte, a dor se tornou ainda mais forte. "Já me falaram que ela ficará assim, intermitente, por uns seis meses", lamenta.

Segundo Max Igor Lopes, o desafio do paciente é estranhar ao sentir uma dor que parece se delimitar a uma faixa de pele. E o do especialista é reconhecer o sintoma para entrar com o tratamento o quanto antes. Qualquer atraso ou até mesmo uma dose inadequada da medicação dá tempo para o varicela zóster danificar demais o nervo, o que é capaz de perpetuar os sinais dolorosos.

O que fazer depois

Melhor — como sempre — seria nem ter nada disso. E só há um jeito: vacina. Antes, só havia no Brasil um imunizante feito a partir de vírus vivo atenuado, que não podia ser aplicado em pessoas com imunossupressão. "Sua eficácia também não era das mais altas, ficando em torno de 60% no primeiro ano e caindo depressa para 40% e 20% nos dois anos seguintes", explica o doutor Max Lopes.

Agora, porém, já contamos com uma nova vacina feita de proteínas do vírus. Ela não tem essas limitações e a proteção se mantém em mais de 95% nos cinco primeiros anos. No caso de quem teve zóster, como Ana Célia, os anticorpos produzidos pelo organismo vão durar só uns seis meses. Passado esse prazo, melhor se vacinar. É a única garantia de manter o varicela quieto em seu canto.