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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Seus genes podem fazer remédios comuns não funcionarem para você

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

24/01/2023 04h00

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Existe um problema empurrado sob o tapete, até porque alguns médicos nem sabem direito como lidar com ele: dados americanos e europeus apontam que, no mínimo, 5% das internações hospitalares são devido a algum evento adverso relacionado a medicamentos.

Trabalhos recentes não aliviam nem um pouco essa informação e afirmam que, na verdade, esse número pode chegar a quase o dobro disso, ou 9%.

Nos Estados Unidos, diga-se de passagem, estima-se que esses eventos ligados ao uso de remédios provoquem nada menos do que 100 mil mortes por ano. Não dá para fazer vista grossa. Aqui no Brasil, porém, ainda se desconhece o tamanho exato da encrenca.

Mas o detalhe fundamental é o seguinte: nessa história, ninguém está computando aquele sujeito que se automedicou ou que passou mal depois de ter exagerado na dose, mesmo que sem querer. Nada disso.

"Estamos falando de gente que usou de maneira lícita a medicação prescrita pelo médico, na dose correta, fazendo tudo como mandava a bula", esclarece o oncologista clínico Fernando Moura, que coordena o Centro de Medicina de Precisão do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

A medicina de precisão é aquela que considera como somos diferentes uns dos outros. E nossas maiores diferenças, aquelas que fazem cada organismo ser de fato único, estão na porção microscópica dos nossos genes.

São eles que explicam por que, para alguns indivíduos, tomar determinado remédio rigorosamente conforme a prescrição é correr o risco de complicações que eu ou você só teríamos se tivéssemos engolido quase a cartela inteira de uma só vez.

"Podem ocorrer problemas renais, respiratórios, hepáticos", começa a listar o doutor Moura. "E, quando é assim, a mortalidade fica entre 0,2% e 0,3%, o que não é desprezível", nota.

O oposto também acontece, isto é, a pessoa pode usar determinado fármaco seguindo à risca as orientações e ele nem sequer lhe fazer cócegas por causa dos seus genes. "Quem nunca ouviu alguém contar que teve de trocar de remédio porque não tinha melhorado?", lembra o médico. Sim, às vezes é isso também.

A confusão, então, só aumenta — até porque, quando é assim, pode ficar invisível. Imagine um indivíduo que tem uma arritmia. Ele talvez seja disciplinado, sempre se lembrando do comprimido que o cardiologista lhe passou. E, apesar disso, seguir desprotegido, sem ter noção do perigo. Se acontecer um piripaque, provavelmente ninguém cogitará que o medicamento não estaria fazendo o efeito esperado.

Segundo Fernando Moura, o que poderia prevenir uma situação assim seria um fazer um painel genético antes mesmo de se iniciar um tratamento farmacológico ou, vá lá, quando ele já foi iniciado, mas não está sendo eficaz. O exame é uma ferramenta da farmacogenômica, ramo que estuda justamente a interação entre nossos genes e os mais diversos medicamentos.

"Arrisco a dizer, em um exercício de imaginação, que se o custo fosse zero e esse painel já estivesse disponível para toda a população, ele iria evitar muito problema grave", pensa o oncologista. "E economizaria gastos fabulosos que todos esses eventos adversos geram."

Ele sonha com o dia em que o resultado de um painel desses estará no nosso smartphone ou em um prontuário único, para que o médico possa olhar durante a consulta, antes de carimbar o receituário. Desse modo, seria possível fazer trocas ou ajustar a dose de maneira pessoal, extremamente precisa e intransferível.

Falta um bocado para isso. Falta, inclusive, os próprios médicos conhecerem a farmacogenômica e lembrarem que o organismo do paciente pode metabolizar drogas comuns em velocidades bem diferentes do que a bula prevê.

Metabolizadores ultrarrápidos e metabolizadores lentos

Às vezes, um remédio não tem um pingo de chance de exercer a sua função. Isso porque, mal entra no organismo, suas moléculas são quebradas e eliminadas sem dó, antes de conseguirem agir e ter qualquer efeito terapêutico. "O indivíduo, então, é o que chamamos de metabolizador ultrarrápido", define Fernando Moura.

No outro extremo estão os metabolizadores lentos. Neles, as moléculas da medicação permanecem em ação por um tempo maior do que na maioria das pessoas, o que potencializa os efeitos, algo que nem sempre é positivo.

"Nas drogas psiquiátricas, com frequência há uma proximidade entre a dosagem terapêutica, aquela da bula, e a dose tóxica", exemplifica o oncologista. "Portanto, um desvio na velocidade de metabolização já causa complicações."

Também há indivíduos que, vasculhando os genes, se revelam em uma faixa intermediária. "Eles metabolizam o remédio apenas ligeiramente mais devagar", conta o médico. Seria o caso, então, de ajustar a dose.

Mas, por sorte, tranquilize-se: a maioria de nós metaboliza quase todos os medicamentos em velocidade normal.

O que o exame analisa

Usando dois métodos distintos que se sobrepõem, o painel de farmacogenômica realizado no Einstein esmiuça 16 genes. "Eles estão envolvidos no metabolismo de quase todos os medicamentos disponíveis", garante o médico. "Por isso, o laudo final traz informações bastante completas."

Pergunto se é possível a gente ter o metabolismo mais acelerado apenas para alguns remédios e não para outros. "É claro. Você pode ter um polimorfismo, isto é, uma variação em um gene específico, que a gente sabe ter mais a ver com uma classe determinada de medicamentos", explica o doutor.

Aliás, em tese, é até possível ter uma variação em certo gene, acelerando o modo como o organismo lida com um remédio, e em outro gene ter uma segunda alteração pontual, diminuindo a velocidade de metabolização de uma droga diferente. Mas, na prática, é muito raro ser metabolizador ultrarrápido e lento ao mesmo tempo.

Analgésico no leite materno

Ultrarrápido ou lento, seja como for, não faltam exemplos do que pode acontecer quando existem alterações assim. Um deles é o da codeína. Esse analgésico é bastante usado no pós-operatório para o paciente não sentir tanto desconforto, inclusive depois de cesáreas.

"Mas, aí, se a mulher for uma metabolizadora ultrarrápida, seu organismo vai converter a codeína em uma molécula similar à morfina, a qual é capaz de passar para o leite e causar problemas graves para o recém-nascido que está sendo amamentado", conta o médico.

O remédio pode enganar o coração

Pacientes que são metabolizadores lentos, por sua vez, podem apresentar alteração em um gene que atrapalha a ação de um antiplaquetário, o clopidogrel. Ele é prescrito para evitar a formação de trombos, capazes de desencadear infartos e AVCs.

"Só que a sua molécula precisa de um metabolismo que não seja muito lento para ser ativada", explica Fernando Moura. "Ou seja, sem isso, esse remédio engana e não evita eventos cardiovasculares."

Quando um quimioterápico dura demais

Falando de sua área, que é a oncologia, Fernando Moura lembra que 4% dos pacientes têm deficiência de uma enzima chamada DPD. "Quando ela ocorre, um dos remédios que a gente mais usa para combater tumores de intestino, de mama e de cabeça e pescoço, entre outros, não é metabolizado facilmente", informa.

Resultado: o remédio continua agindo, como se o paciente recebesse quimioterapia de maneira contínua. Isso causa vários tormentos, como efeitos tóxicos na medula e mucosites graves. Para quem não sabe, mucosites são feito aftas na cavidade oral.

"O perigo é que essas feridinhas não só doem, como se tornam portas de entrada para bactérias, ainda mais que o sistema imunológico estará debilitado pelo comprometimento da medula", diz o doutor Moura.

Sem o mínimo para fazer efeito

O painel também dá informações até sobre antifúngicos. Em geral, infecções por fungos exigem persistência no tratamento, porque essas criaturas demoram para capitular diante dos remédios. Mas, às vezes, a razão de o problema não desaparecer é outra.

"O organismo precisa ter uma boa concentração de medicação para combater não só fungos, como bactérias e outros agentes infecciosos", lembra o médico. "Ora, se remédio está sendo metabolizado muito ligeiro, essa concentração dificilmente é alcançada e a infecção perpetua."

Esse problema — a falta de uma concentração mínima para se obter o efeito desejado — pode se repetir com antidepressivos, anti-inflamatórios, drogas usadas para controlar o diabetes e até mesmo com anticoncepcionais, para citar só alguns.

De olho na minoria

Se todo e qualquer remédio pode sofrer interferência das aceleradas ou desaceleradas do metabolismo, é bom reforçar que este texto não deveria provocar como efeito colateral uma cisma de que a prescrição do clínico não irá agir ou, no outro extremo, o temor de que o seu medicamento acabe se tornando tóxico. Esses problemas não são tão comuns.

"Talvez só uma pequena parcela da população apresente essas alterações", calcula o doutor Fernando Moura. "Mas a medicina de precisão mostra que, se eu encontro quem faz parte desse pequena parcela, eu transformo a sua vida" Sem dose de exagero, muitas vezes a salva.