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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Covid-19: por que devemos ficar de olho em quem teve um quadro grave

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

17/01/2023 04h00

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Escapar com vida de uma temporada na UTI por causa da covid-19 é, sem dúvida, motivo de sobra para alguém se considerar vencedor de uma enorme batalha. Mas, provavelmente, ela não é a última nessa guerra.

Quem chegou a precisar de ventilação mecânica durante a hospitalização — sinal de que a doença foi mesmo grave —, pode ter de enfrentar outras lutas, algumas de vida ou morte. Ignorar essa ameaça é perigoso.

Um ano depois da alta hospitalar, por exemplo, nada menos do que 47% das pessoas que passaram por essa situação relatam alguma incapacidade que não tinham antes, como dificuldade para se locomover, para fazer compras, para cuidar de suas finanças, entre outras limitações derrubando qualidade de vida.

Mas este é apenas um dos números preocupantes revelados por um novo estudo da Coalizão COVID-19 Brasil.

Para quem ainda ouve esse nome sem saber direito do que se trata, explico: oito instituições de saúde brasileiras uniram forças para realizar pesquisas a fim de que a gente compreenda melhor a infecção pelo Sars-CoV-2 que, afinal de contas, ainda tem diversos aspectos a serem elucidados.

Fazem parte dessa aliança o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o Hospital do Coração, o Sírio Libanês, o Einstein, a BP-Beneficência Portuguesa — estes todos, de São Paulo —, o Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, o Brazilian Clinical Research Institute e, finalmente, a BRICNet (Rede Brasileira de Pesquisa em Terapia Intensiva).

O estudo da vez, denominado Coalizão VII, acaba de sair na revista da Sociedade Europeia de Medicina Intensiva. Os pesquisadores acompanharam 1.508 pacientes internados em 84 hospitais espalhados pelo Brasil ao longo de um ano.

De três em três meses, eles os procuravam querendo saber dos sintomas persistentes, se surgiram outras doenças ou se os problemas que já apresentavam antes tinham se agravado. Enfim, se estavam vivos e passando bem. Nem sempre ouviam uma boa resposta.

Para que pudessem ser feitas comparações mostrando o impacto da infecção conforme a sua gravidade, toda essa gente foi dividida em quatro grupos: os que não receberam oxigênio, apesar de terem ido parar no hospital; os que chegaram a usar máscara de oxigenação; os que precisaram de uma forcinha ainda maior para respirar, com aquele cateter enfiado no nariz mandando oxigênio em alto fluxo e, finalmente, aqueles que necessitaram da ventilação mecânica.

De acordo com os resultados, deveríamos saber onde estão estes últimos, isto é, os sujeitos que precisaram de um equipamento fazendo a função dos pulmões para que esses órgãos pudessem descansar, ganhando assim a chance de se recuperarem do baque provocado pelo coronavírus. Esse grupo, em especial, deveria ser acompanhado a longo prazo por profissionais de saúde. Entenda por quê.

Voltar para o hospital

Uma em cada quatro pessoas que foram intubadas durante o tratamento da covid-19 precisou ser internada outra vez em algum momento dos doze meses subsequentes.

A causa? "Muitas vezes é uma nova infecção, por outro agente qualquer, porque o organismo ficou debilitado. Ou, ainda, alguma complicação de um problema que essa pessoa já tinha e que ficou descompensado, como um diabetes ou uma doença cardiovascular", informa a médica intensivista Flavia Machado, que é presidente da BRICNet e professora da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Para ela, sendo honesta não há surpresa: "Ora, é o que costumamos ver nos quadros de sepse e não é de hoje que alertamos que o paciente que teve sepse precisa de uma vigilância intensa porque se torna frágil", diz. Mas, se o alerta é antigo, a situação sem precedentes da pandemia faz com que comece a ser ouvido.

A sepse acontece quando diversos órgãos deixam de funcionar por causa de uma resposta inadequada ou desregulada a uma infecção. "E, nos casos graves da covid-19, no fundo o que temos é uma sepse viral."

Infarto ou AVC

O estudo Coalizão VII também aponta que, no primeiro ano após a alta, 5,6% das pessoas que ficaram na ventilação mecânica tiveram infarto ou AVC (acidente vascular cerebral), eventualmente até morrendo por causa de seu problema cardiovascular.

"Isso é praticamente o dobro da taxa que encontramos entre os pacientes que não precisaram desse suporte para respirar durante a internação", observa o médico intensivista Alexandre Biasi Cavalcanti, que é membro da diretoria da BRICNet e superintendente de Ensino e Pesquisa do Hcor (Hospital do Coração), na capital paulista.

Ele também compara o achado com o conhecimento que se tem dos quadros de sepse: "Nela, a probabilidade de complicações cardíacas permanece alta até cinco anos depois", conta.

No caso da covid-19, há um suposto agravante. A infecção é reconhecida por provocar um aumento expressivo de trombos, ou coágulos, nas primeiras semanas. "Por causa deles, muitos pacientes internados sofreram um infarto enquanto estavam na UTI", exemplifica.

O médico não descarta que ao menos uma parte dos problemas de coração que surgiram após a alta e até mesmo das mortes seja, no fundo, complicações de eventos cardíacos ocorridos na fase aguda da infecção.

Estresse pós-traumático

A prevalência de TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) nos indivíduos que usaram a ventilação mecânica de tanto que o Sars-CoV 2 aprontou em seus pulmões é o dobro da que encontramos na população brasileira em geral.

Além disso, um em cada quatro indivíduos que permaneceram em estado grave de covid-19 agora convive com crises de ansiedade.

A professora Flavia Machado mais uma vez acha esse resultado compatível com o que se via antes da pandemia : "Até 40% das pessoas que tiveram sepse desenvolvem esses transtornos depois", informa.

Uma UTI, de fato, não é um ambiente do qual alguém possa guardar as mais agradáveis lembranças. Mas o curioso, para nós leigos, é pensar que o paciente estava completamente sedado se usou a ventilação. De que experiência traumatizante, então, ele poderia se recordar?

"Na verdade, essa é uma visão de uns quinze anos atrás, quando achávamos que a sedação profunda, aquela capaz de deixar indivíduo apagado por assim dizer, evitaria o sofrimento mental", conta o doutor Calvalcanti. "Hoje se sabe que o estresse é até maior depois."

Por isso mesmo, nos últimos tempos os médicos vêm optando por uma sedação um pouco mais leve, para controlar a ansiedade, e também evitar a dor de quem está no leito.

A questão é que, no auge da pandemia, com as UTIs lotadas e demandando reforços de profissionais de saúde menos acostumados com cuidados intensivos, muitas vezes se apelou para um excesso de sedativos, o que piora em tese o cenário do estresse pós-traumático.

Risco de morrer

A taxa de mortalidade entre os pacientes que foram intubados é de 8% ao longo dos doze primeiros meses após terem saído do hospital, enquanto entre os indivíduos que tiveram covid-19, mas que não precisaram desse equipamento para respirar, ela ficou em 2%.

"Nos quadros graves de covid-19, os pacientes permaneceram muito mais tempo na ventilação mecânica perto de outras infecções", compara a professora Flavia."Nesse período prolongado, tivemos de lançar mão de drogas que ajudaram a mantê-los vivos, mas que poderiam ser lesivas, como os bloqueadores do movimento muscular."

É difícil saber até que ponto as complicações observadas no estudo são uma consequência de procedimentos assim ou do arrastão do Sars-CoV-2 pelo organismo. "Mesmo falando de infecção, não dá para diferenciar se o que vimos nesse estudo foi desencadeado pelo coronavírus ou por uma bactéria que o paciente, vulnerável, contraiu na UTI e que também provocou sepse. Provavelmente, é um mix disso tudo", pensa a médica.

O que podemos fazer

O apoio da família é fundamental. "Todos devem compreender que aquele indivíduo ficará por um bom tempo debilitado física e emocionalmente", explica a professora. "Aliás, na alta, o certo seria perguntar à equipe de saúde se quem estava internado precisaria de fonoaudiólogo, de fisioterapeuta, de nutricionista, de psicólogo e assim por diante." Na prática, porém, ela acredita que nem todos receberam essa orientação ou foram encaminhados.

Outra coisa para todo mundo ficar esperto: "Doenças crônicas tendem a ficar descompensadas nos primeiros meses ou anos. O cuidado com os remédios para tratá-las deve ser redobrado", avisa.

O doutor Alexandre Cavalcanti completa: "É importante que a pessoa seja bem acompanhada pelo médico, de preferência aquele que a tratou na covid-19 ou que já a conhece bem". Não, não dá para adiar as consultas de rotina.

"O bacana é que estamos vivendo um outro momento da pandemia", diz o médico. "Com as vacinas, os casos graves se tornaram mais raros." Verdade. Mas ainda temos que olhar por aqueles que cruzaram com o Sars-CoV-2 quando os tempos eram mais sufocantes, se me entendem. E eles são muitos.