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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Uma luz para resolver um dos tumores mais traiçoeiros que acometem os rins

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/03/2021 04h00

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Do instante em que é produzida ao momento em que é jorrada para fora do corpo, a urina passa por um trajeto relativamente longo, revestido do começo ao fim por um tecido capaz de suportá-la — trata-se do urotélio. E é nele que pode surgir um câncer que, até agora, vinha colocando os médicos em uma sinuca de bico conforme a sua localização.

Afinal, tudo tem limite. Às vezes, esse tecido de revestimento é obrigado aguentar o contato constante com substâncias bastante agressivas que os rins filtraram, como aquelas tragadas por fumantes inveterados ou as toxinas absorvidas por quem precisa lidar com solventes pesados no dia a dia, por exemplo.

Ora, tudo o que não presta e que é carcinogênico por natureza pode ficar dissolvido na urina. Aí, chega a um ponto em que surge uma mutação maligna nas células do urotélio, o estopim de um tumor.

Se esse câncer nas vias excretoras aparece na bexiga, até que menos mal. Na uretra, o canal que sai dessa bolsa levando o xixi embora de vez, idem. "Em casos assim, é mais fácil flagrar o tumor e retirá-lo. Você o alcança fácil por meio da endoscopia", explica o médico Lucas Nogueira, coordenador de Pesquisa Clínica em Urologia do Hospital das Clínicas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e também diretor científico da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia).

Mas nada disso se compara à situação do mesmíssimo câncer urotelial quando ele se origina em um dos rins ou até mesmo em um dos ureteres, o par de condutores que desce desses órgãos para derramar a urina produzida na bexiga.

"Nesses casos que acometem o trato superior, como costumamos dizer, para começo de conversa a doença costuma ser diagnosticada em estágios bem mais avançados. E a saída, muitas vezes, era retirar o rim doente ou do lado de onde partia o ureter com esse tumor", conta o urologista, que é um dos autores de um trabalho divulgado por médicos do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, nos Estados Unidos, onde é investigador visitante.

Apresentado no Congresso Mundial de Oncologia Genitourinária no mês passado, ele revela o que aconteceu com 14 pacientes tratados com terapia fotodinâmica, isto é, com luz. E os resultados foram de fato tão bons que a FDA, a rigorosa agência que regula os tratamentos de saúde nos Estados Unidos, autorizou acelerar o estudo, indo direto para fase 3 com um maior número de indivíduos. Essa etapa está para começar já no mês que vem e deverá envolver 100 pacientes. Mas o objetivo continua sendo um só: preservar o rim.

Como é o novo tratamento

Retirar um dos rins, ainda mais para quem teve um câncer desses, sempre foi uma aposta arriscada — e provavelmente não pelos motivos que você imagina. O organismo, se recuperado da doença, poderia se virar até que bem com o rim restante. Mas o problema é que ela é recorrente em de 50% a 60% das vezes. E, se volta, o único rim à disposição simplesmente não dá conta sozinho da quimioterapia necessária para varrer as células malignas que tornaram a se multiplicar.

"A terapia fotodinâmica não é algo novo", esclarece o doutor Lucas Nogueira, que já a tinha estudado no tratamento de tumores em sua primeira temporada no Memorial Sloan Kettering entre 2007 e 2008. No passado, os médicos também chegaram a usar o laser para queimar o tumor urotelial no rim. Não deu certo: "Ele queimava células sadias junto e os danos provocavam um tremendo déficit renal", lembra.

Desta vez, os médicos lançaram mão de uma substância de nome complicado, a padeliporfina, que é derivada da clorofila — "mas não a clorofila das plantas e, sim, aquela que é produzida por determinadas bactérias", ensina o urologista.

O fato é que a padeliporfina é altamente fotossensibilizante. Depois de injetada na circulação do paciente, em uma sala mantida em penumbra, os médicos conduzem por meio de endoscopia uma fibra ótica até o interior do rim. "Então, a gente aciona uma onda luminosa bem diante do tumor e o deixa ali, tomando esse banho de luz, por uns 15 minutos", descreve.

É o suficiente. A luz ativa a padeliporfina e isso fecha os vasos sanguíneos. Sem ser oxigenado pelo sangue, o tumor vai morrendo aos poucos. E tende a sumir do mapa passados cerca de trinta dias. Aliás, foi o que aconteceu com 64% dos indivíduos tratados desse jeito durante o estudo.

O restante, cujo tumor não desapareceu na primeira aplicação de luz, foi encaminhado para uma segunda sessão. "Mas, entre esses, 67% tiveram sucesso repetindo tratamento", diz o doutor Lucas Nogueira "No geral, conseguimos destruir o tumor no rim de aproximadamente 90% dos pacientes. E, se a gente olhar só para aqueles que tinham tumores com menos de 2 centímetros de diâmetro, a taxa de sucesso foi de 100%".

O procedimento, por ser minimamente invasivo, foi ambulatorial. Todos voltaram para casa no mesmo dia, umas quatro horas mais tarde. A única recomendação era não tomar sol nas 24 horas seguintes e ingerir bastante líquido para garantir uma eliminação rápida da substância fotossensibilizante pela urina.

Após quase um ano de acompanhamento, 93% do total tinham conseguido manter o rim que, um dia, foi afetado pelo câncer — e ele funcionava bem, obrigado.

Uma dúvida é se a terapia fotodinâmica seria a solução para a doença ou se o tratamento ainda precisaria ser complementado pela quimioterapia depois dela. "Depende", explica o urologista. "Além do tamanho, o exame das células malignas feito pelo patologista é que vai determinar se o tipo de tumor urotelial é mais ou menos agressivo e se, portanto, precisa da quimioterapia para aumentar a probabilidade de vencê-lo. Mas, sim, há casos em que a terapia fotodinâmica já basta."

A mesma técnica de terapia fotodinâmica, diga-se, está sendo investigada para outros tumores de difícil acesso, como o de pâncreas e alguns cânceres de pulmão.

Sempre é bom ficar de olho

Para cada mulher com carcinoma urotelial, há dois homens. Geralmente, a doença é diagnosticada depois dos 60 anos e, aí é que está, quase sempre quando o tumor já está bem crescido.

"O ultrassom dos check-ups de rotina dificilmente conseguem visualizá-lo", justifica Lucas Nogueira. "É diferente de outros cânceres renais, que não são de urotélio, quando você é capaz de enxergar uma bola." Frequentemente, só a tomografia com contraste faz o flagrante.

Além do cigarro — mais um motivo para apagá-lo! — e da exposição a elementos tóxicos no trabalho, como acontece com trabalhadores no setor de petroquímica, vale ficar mais esperto quem tem diagnóstico de mutações genéticas por trás de tumores de ovários, de endométrio e de intestino. Elas também têm a ver com o câncer urotelial.

O problema evoluiu sorrateiramente. Algumas pessoas se queixam de uma dorzinha chata das costas. Outras só se dão conta de que estão com alguma encrenca se notam sangue na urina, ou hematúria, como falam os médicos. "Aliás, qualquer sinal de sangue no exame de urina, mesmo que ele não seja visível, vale uma investigação", avisa o urologista. Fica a dica.

Nunca é recomendável dar bobeira, mesmo sendo um tumor mais raro. O bom é que, talvez, mais raros ainda serão os casos sem um tratamento certeiro. Se tudo der certo, a terapia fotodinâmica para o câncer urotelial virará rotina nos centros de oncologia em cerca de três anos.