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Blog da Lúcia Helena

O que faria a gente perder o medo de cuidar da saúde em plena pandemia?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

26/11/2020 04h00

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O vírus Sars-CoV 2 fez — e faz — um estrago sem tamanho que, até agora, fica difícil de mensurar. São milhões e milhões de pessoas que têm algum problema de saúde evoluindo em silêncio porque ficou sem diagnóstico no 2020 dominado pela covid-19. Outros talvez vivam uma situação até um pouco pior, já que sabem muito bem o que têm e arriscam ver a encrenca se tornar grave, deixando-a meio de lado até o novo coronavírus desaparecer.

Só que o vírus amaldiçoado não desapareceu e o que se nota é uma perda do controle das doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão. E, infelizmente, gente morrendo à toa de infarto, de AVC, de um câncer que aproveitou esse vácuo no tratamento para vencer a guerra.

"Durante os primeiros meses da pandemia, tive de correr para atender dois casos de apêndice perfurado, porque o paciente ficou em casa esperando melhorar em vez de procurar o pronto-socorro ", lembra o cirurgião do aparelho digestivo Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Todos os dias, ele chega pontualmente às 5 horas e 40 minutos no centro cirúrgico, iniciando a primeira operação da jornada pontualmente às 6 da manhã. Mas, claro, os dois casos a que ele se refere não estavam previstos na agenda. Foram emergências dignas de seriado americano — bom avisar que um apêndice inflamado, quando demora para cair fora na sala de cirurgia, derrama o seu conteúdo purulento na circulação sanguínea e, daí, por um triz a pessoa pode morrer.

Casos assim só ilustram o que foi constatado por uma pesquisa online realizada pela Ipsos e encomendada pela Johnson & Johnson Medical Devices (J&JMD), envolvendo 2.200 homens e mulheres da América Latina, 500 deles brasileiros: nela, sete em cada dez pessoas disseram que cancelaram ou que adiaram serviços de saúde por causa da covid-19. No Brasil, essa foi a resposta de 64% dos entrevistados. Não à toa, 39% acham que sua saúde piorou um bocado nesse meio-tempo.

E, olha, até nos saímos melhor do que "los hermanos" — 80% dos argentinos, 82% dos chilenos, 77% dos colombianos e 72% dos mexicanos fugiram de visitas a hospitais, centros de diagnóstico e consultórios nesses últimos meses — e que meses!

"Essa situação tem um impacto imenso na saúde", observa Gustavo Scapini, gerente sênior de Medical Affairs da J&JMD e também cirurgião geral que — ao contrário de Sidney Klajner, que inicia o expediente como líder de um dos maiores hospitais do mundo depois de duas ou três operações matutinas —, sai todos os dias da empresa para pegar no bisturi após as 18 horas até tarde da noite, cuidando de quem sofreu traumas.

"Quando há atrasos em exames, como colonoscopias e mamografias, cria-se o espaço para o avanço de um câncer que poderia ser tratado e curado enquanto ainda era precoce", exemplifica. "Se não flagramos uma doença cedo ou se perdemos o controle sobre ela, aumenta a mortalidade ou, na melhor das hipóteses, diminui demais a qualidade de vida do paciente, que talvez até apresente sequelas irreversíveis. Daí, os gastos com a saúde aumentam."

Isso motivou a equipe da J&JMD a pensar, ainda no início do caos da covid-19, no que poderia ser feito para que as pessoas retomassem os cuidados, que, concordo, não deveriam se resumir em afastar a ameaça do novo coronavírus. Nascia o esboço de uma campanha, "Sua Saúde Não Pode Esperar", que inclui iniciativas para capacitar os profissionais do setor a atrair de volta seus pacientes. E o ponto de partida seria o diagnóstico da situação, ou seja, o resultado da tal pesquisa.

Medo de pegar covid na sala de cirurgia

Qual a sua maior preocupação em relação a marcar uma cirurgia? — esta era uma das primeiras perguntas. Não é preciso ser bidu para chutar a resposta da maioria: 60% apontaram o dedo para o novo coronavírus, confessando o medo de ficarem expostos à covid-19 durante a própria operação. "E 53% também têm receio de contrair a infecção no período pós-operatório", conta o doutor Scapini.

Há diversos outros levantamentos apontando na mesma direção. De acordo com uma pesquisa feita pelo Colégio Brasileiro de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial, por exemplo, houve uma queda de 92,5% nas chamadas operações eletivas dessa especialidade, ou seja, aquelas programadas com antecedência.

Tudo bem, devemos considerar que esse tipo de procedimento foi interrompido em todo o país entre 16 de março e 22 de maio deste ano por conta da pandemia. Depois disso, mesmo assim... "A demanda reprimida já diminuiu, com as pessoas mais bem informadas sobre a sua segurança, mas continuamos longe de uma situação de normalidade", observa o cirurgião Marcelo Marotta, presidente eleito da entidade para o biênio 2021-2022 e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Esse efeito colateral da covid-19 não se limita às cirurgias que precisariam já terem sido realizadas e que continuam em compasso de espera. O cardiologista João Fernando Monteiro Ferreira, presidente da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo), comenta que, na sua área, inúmeros serviços relatam uma redução nos atendimentos.

"Publicações internacionais associam esse fato ao impacto em mortes, inclusive domiciliares", diz ele, citando a Itália, onde se viu um aumento de 58% de gente morrendo por parada cardíaca dentro de casa durante o pico de infecções pela covid-19 na primeira onda. Os italianos simplesmente não quiseram chamar a ambulância.

Segundo o doutor João Ferrreira, um fenômeno parecido foi notado em Nova York, nos Estados Unidos, onde as hospitalizações por síndrome coronária aguda caíram pela metade. Leia, por angina, por uma coronária entupida, por infarto. E seríamos muito tolinhos se imaginássemos que o coração andou sofrendo menos nesses tempos. Mais lógico deduzir que sofreu calado.

É conversando que a gente se entende?

Este é, ao meu ver, o ponto nevrálgico dos resultados da pesquisa da campanha "Sua Saúde Não Pode Esperar": 80% dos brasileiros não sentem a menor firmeza de que o hospital ao qual têm acesso está gerenciando o risco de covid-19 do jeito correto.

É uma falta de confiança maior do que a média dos latino-americanos, que fica em 70%. E não que os Estados Unidos sejam exemplares na pandemia — até momento, muito pelo contrário —, mas, lá, 24% da população botam fé que os hospitais estão fazendo tudo direito para diminuir o risco de um paciente se infectar ao dar entrada. Essa nossa insegurança às vezes mata. Então, e agora?

"Os hospitais precisam contar tudo o que estão fazendo, que é o que 65% das pessoas mais querem saber deles"", opina o doutor Scapini. "E, ainda pela pesquisa, melhor seria se o próprio médico conseguisse ligar ou mandar uma mensagem."

O reforço dado por uma palavrinha desse profissional faria diferença para 74% dos brasileiros, que declararam que se sentiriam muito mais confiantes se falassem com o seu clínico ou cirurgião antes de saírem de casa para cuidar da saúde. Mas não é simples — pelo desconhecimento de quem será o responsável pelo atendimento, pela falta de tempo do profissional ou, cá entre nós, até de tato.

A comunicação dos hospitais

"Com a divulgação de como estávamos fazendo — criando fluxos separados para quem tem sintomas respiratórios ou um diagnóstico já confirmado de covid; com uma ala do hospital dedicada só para isso; colaboradores que não se misturam com os de outras áreas; com aferição de temperatura de todos; o uso de equipamentos para atender os pacientes infectados pelo Sars-CoV 2 diferentes daqueles que são usados nos indivíduos com outras doenças, incluindo salas cirúrgicas exclusivas para eles —, o Einstein foi talvez uma das organizações que mais rapidamente retomaram suas atividades", diz Sidney Klajner, atestando que a boa comunicação seria a chave.

Hoje, esse hospital está com praticamente 100% de ocupação, informando tudo ao seu público nos mínimos detalhes. No caso de cirurgias programadas, os pacientes fazem o teste de RT-PCR na véspera para saber se podem mesmo ser internados. Outro cuidado: o check-in é feito online ou no quarto para evitar aglomerações.

Nem todos têm acesso ao Einstein. Fato. Mas o que está sendo feito lá deveria ser encarado como uma régua do que nós, pacientes, deveríamos desejar, observar e — por que não? — até cobrar de outros hospitais. No mínimo, exigir transparência do que efetivamente está sendo feito.

A confiança na telemedicina

Não de hoje, os atendimentos à distância são considerados uma saída, especialmente em um país vasto e complexo como o nosso, em que você não encontra médicos de todas as especialidades em tudo o quanto é canto. E, sem dúvida, a pandemia acelerou esse caminho. No entanto, voltando à pesquisa, apenas 59% dos entrevistados se sentiriam bem utilizando um serviço de telemedicina.

Essa certa má vontade em conversar com o médico pelo computador diminui um pouco depois de uma primeira experiência. Entre aqueles que já usaram serviços de telemedicina, 65% se sentiram confortáveis.

Quando indagados sobre as principais razões para alguém usar a telemedicina, 49% dos entrevistados devolveram: "não ter de ficar sentado em uma sala de espera onde outras pessoas podem estar doentes". Eis o medo da covid-19 de novo.

Já 42% alegaram que uma boa razão seria evitar o deslocamento. Finalmente, os entrevistados deram um leve puxão de orelha nos profissionais de saúde: 29% acham que bom mesmo é que a teleconsulta é iniciada com uma pontualidade que não costuma acontecer fora do digital.

Procurei o cardiologista Roberto Botelho que, além de presidente da Fundação Adib Jatene e co-fundador da Conexa Saúde, uma plataforma de telemedicina, é considerado um dos maiores especialistas do mundo nessa tecnologia aplicada ao setor de saúde. E ele logo garante: "Não tem volta. A telemedicina vai reduzir custos e melhorar o acesso, que são dois grandes problemas da saúde globalmente."

Ele chama a atenção: a concentração de médicos, de hospitais e até de leitos é maior em lugares com PIB mais elevado. Em compensação, em países com menor PIB, há maior concentração de pessoas com doenças crônicas. Ou seja, mais doentes e menos especialistas distribuídos pelo território. E esse é um desequilíbrio que o atendimento por meio da web ajudará a resolver.

Mas o médico concorda que existem pelo menos dois enormes desafios. Um deles diz respeito à tecnologia em si. "As redes atuais não foram feitas para suportar esse tipo de serviço, algo que a plataforma 5G, quando chegar, atenderá melhor", afirma. "Por exemplo, é preciso diminuir o tempo de latência." Traduzo esse "tecnologês" e você logo ligará o nome ao perrengue: é quando há uma irritante diferença entre um lado e outro da conexão.

O outro aspecto levantado por Roberto Botelho é mais complexo: será que vamos nos adaptar a tudo isso ligeiro? Ao relógio que avisa se estou tendo infarto e ao médico que conversa comigo pela telinha?
"Estudiosos dizem que a nossa adaptação evolui de maneira linear, enquanto a transformação tecnológica avança de modo exponencial", informa.

Ou seja, somos como aquela criança que precisa dar três passos com pernas curtas para acompanhar o ritmo do adulto apressado. "O que vivemos hoje em 2020, até em função da aceleração provocada pela pandemia, já foi muito além dessa capacidade humana de se adaptar", nota.

E ele volta ao centro da questão: "Por isso mesmo, confiar no médico que está do outro lado é fundamental. Assim como é preciso experimentar a telemedicina do jeito certo. Isto é, saber que ela nunca substituirá a análise presencial. Mas que pode ser uma ferramenta fantástica quando essa presença pode ser evitada ou quando isso é até necessário."

Por exemplo, quando você evita horas de trânsito só para o clínico pedir exames que você deverá levar em um retorno — por que não chegar no cara-a-cara já com os laudos na mão? Ou quando não sabe se vale correr o risco de ir a um pronto-socorro durante a pandemia..

Para João Ferreira, da Socesp, o fundamental é médico e paciente entenderem que em uma consulta "o mais valioso é a interação e ela pode ser plenamente desempenhada no atendimento eletrônico". Mas ele lembra que o profissional de saúde talvez precise treinar o foco. "Ele não deve se distrair com o ambiente e, sim, ficar concentrado no paciente da mesma forma que faria no atendimento presencial", dá o exemplo. "E, no final, deve confirmar se foi boa a impressão com a experiência do atendimento online." Pois é, não custa perguntar, doutor.