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Blog da Lúcia Helena

Deveriam milhares de jovens fazer vestibular presencial em SP no domingo?

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Colunista do UOL

19/11/2020 14h18

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Enquanto São Paulo observa uma alta de casos de covid-19, chamando a atenção para um perfil de doentes um pouco mais moço e de classe sócio-econômica mais elevada em comparação ao dos que eram internados nos primeiros meses da pandemia, exatos 4.330 jovens devem estar consultando o portal da Fundação Vunesp. Provavelmente, são os mesmos jovens aos quais a gente pede o tempo inteiro para evitar aglomerações.

No entanto, eles estarão todos juntos neste próximo domingo (22) —1.510 deles em um endereço e os demais em outro. Nesse segundo local, os 2.790 restantes seguirão na direção de dois prédios diferentes depois de atravessarem os mesmos portões. E o total da rapaziada, se você quer ter uma noção precisa da matemática do risco, será dividido em 179 salas.

Portanto, feitas as contas e arredondando para baixo, haverá uma média de 24 garotos e garotas em cada uma delas, sem contar a equipe encarregada de acompanhá-los durante a aplicação da prova para entrar na Faculdade de Medicina do ABC, que abre a temporada dos grandes vestibulares presenciais na Grande São Paulo da pandemia.

Aliás, deixo claro: o foco aqui é o vestibular dessa faculdade só por ser o abre-alas. Esse domingo pode anunciar o que nos aguarda. Sei que outras provas já aconteceram na cidade em novembro —mês da constatação de um novo aumento de casos de infecção pelo novo coronavírus—, mas não foram vestibulares para grandes instituições de ensino ou aconteceram online.

Seria essa a melhor hora de juntar tanta gente? "Veja, estamos misturando os assuntos. Uma coisa são os dados da pandemia em São Paulo e outra, a segurança e os cuidados tomados pela Fundação Vunesp, uma entidade séria, escolhida após licitação, justamente porque não queremos nos meter com vestibular", me disse o infectologista David Uip, ex-coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo que calha de ser o reitor do Centro Universitário da Faculdade de Medicina do ABC, onde é titular da cadeira de infectologia.

Tento verdadeiramente compreender — afinal, o professor Uip, que também leciona na Universidade de São Paulo, é um dos médicos mais respeitados por todos, incluindo os seus pares—, mas confesso que, mesmo me esforçando muito, eu não consigo separar as coisas, digo, a pandemia de um vestibular com mais de 4.000 jovens reunidos.

Os meninos e as meninas que entram no portal da Vunesp, como de praxe nas vésperas de um vestibular, informam o CPF para acessarem as informações sobre o local de sua prova. Até aí, nenhuma novidade. O que há de novo e até esperado são orientações a respeito do que cada um deve fazer em função da "covit", com "t" mesmo.

Coluna Lúcia - Reprodução - Reprodução
Reprodução da área do candidato dos vestibulandos da FMABC
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Primeira observação: acho até estranho não existir qualquer menção sobre o momento atual, com o medo de transmissão da doença no ar, na própria home da Fundação Vunesp. Mas deixo para lá e troco essa sensação de estranheza pelo devaneio —ora, ora, quantos pontos seriam descontados da nota desses garotos se, por acaso, em uma pergunta sobre a infecção provocada pelo Sars-CoV-2, eles escrevessem "covit"? Sei, isso parece ser o de menos.

O que importa pra valer são os números que já lhe contei e a série de pequenas confusões a seguir. Que penso, antes que me acusem de pura maldade, começam como um erro ortográfico aparentemente inofensivo, o qual é sintoma de um mal maior, bem maior de comunicação. E esse eu consigo diagnosticar. Vamos lá.

O professor Uip me passa um documento de 11 páginas intitulado "Protocolos para Aplicação de Provas de Concursos, Vestibulares e Avaliações em Decorrência da Pandemia", que pormenoriza todas as medidas da Fundação Vunesp.

"Fui inclusive um dos consultores do Tribunal Superior Eleitoral para a criação dos protocolos que garantiram a segurança das milhões de pessoas — e não apenas 4.000— que foram votar nas recentes eleições municipais. E, ali, tudo deu certo. Até partindo dessa minha experiência, lendo o documento da Vunesp, no qual se baseou o nosso contrato, ele me parece muito bom", afirma Uip. Pode ser. Parece mesmo.

Porém, pondero: em eleições o sujeito entra sozinho em uma sala com dois mesários igualmente mascarados, aperta o botão, pega o comprovante de que cumpriu o seu dever cívico, passa o álcool em gel e se manda dali voando. Vo-an-do. Não fica por seis ou mais horas em um único ambiente fechado, cuja necessidade de ventilação nem sequer é aprofundada nos tais protocolos da Vunesp, que só mencionam a necessidade de janelas que possam ser abertas. O que, por si, não assegura a ventilação ideal em um local, lembre-se, com umas 30 pessoas, considerando as equipes de aplicação da prova. Mas...Sigamos.

O problema da entrada

O que está escrito sobre a "covit" na convocação do candidato, ou seja, o que aparece para ele quando digita seu número e sua senha para confirmar o local de prova e a sala: "Para evitar aglomerações na entrada do prédio, [o candidato] deverá chegar no período determinado das 13:30 às 14:30" (conforme imagem acima).

O professor Uip confirma que aglomerações nas ruas, comuns nessas situações, são bastante indesejáveis, embora "ninguém possa ser responsável pelo que acontece do portão para fora". No entanto, notem: sobre isso, o vestibulando só recebe essa informação que está bem acima, em negrito dos organizadores . Dá a impressão — até que se prove o contrário — de que todos passarão feito boiada nessa meia horinha.

Em nenhum instante esse comunicado tranquiliza vestibulandos e seus familiares — entre os quais podem existir, obviamente, pessoas em grupos de risco para covid-19. A Fundação Vunesp poderia relatar o que consta nos tais protocolos.

Neles, está escrito que a entrada será feita em grupos com intervalo de 30 minutos. Mas, reitero, nas informações aos inscritos, não houve o cuidado respeitoso de compartilhar tudo aquilo que será feito em prol da segurança de todos. O que dá margem a uma compreensível insegurança e só aumenta o estresse que, em tese, dificulta o desempenho de quem pretende ingressar em uma faculdade.

Voltando à preocupante questão da entrada, muita atenção, senhores: portões, avisa o mesmíssimo documento da Vunesp, só serão abertos uma hora antes da prova. Então, por dedução lógica, são dois grupos de milhares de jovens, um na primeira meia hora e outro na segunda meia hora, correto? Só estou me apegando ao texto da Vunesp e, a partir dele, deduzindo que serão grupos imensos.

Por falar nisso, procurei alguns especialistas em infectologia para me ajudarem a esmiuçar essas medidas. Segundo um dos meus entrevistados, que preferiu não ser identificado após a publicação da matéria, "a entrada e a saída dos vestibulares são os momentos críticos e, de fato, todo cuidado será pouco". O mesmo médico, contudo, salienta não vê problemas maiores dentro das salas de provas, confiante de que as medidas adotadas serão suficientes.

Aliás, os candidatos são orientados a irem direto para essas salas, sendo "proibida a permanência em saguões, corredores e áreas externas etc". E também há a ordem para que cada um "se mantenha em filas a uma distância mínima de 1,5 metro". Tomara.

Para afastar os infectados

"Não comparecer ao local da prova se estiver com sintomas de covid-19 ou se teve contato com alguém doente ou com suspeita de covid-19", recebem a advertência os candidatos quando conferem onde deverão estar no próximo domingo.

Partindo do pressuposto de que todos serão responsáveis com a própria vida e com a dos outros, sem escamotear uma febre engolindo um antitérmico — algo muito errado, mas que, cá entre nós, sempre aconteceu em anos anteriores, porque é duro abrir mão do dia para o qual se preparou o ano inteiro —, ou seja, seguindo à risca a recomendação dos organizadores, ainda assim há um belíssimo risco. E ponto.

"Uma parte dos casos não apresenta sintomas", explica Hélio Bacha, sem dúvida um dos mais importantes infectologistas do país, consultor da SBI. "Especialmente nos mais jovens e nos primeiros dias", lembra.

Não está claro, nem no informe aos candidatos nem nos protocolos da Fundação Vunesp, se será conferida a temperatura de cada indivíduo na entrada. Mas, até mesmo diante do que diz o doutor Hélio Bacha, muita gente carregando o novo coronavírus escaparia do termômetro. Logo...

"E mais", completa esse médico. "Todas essas medidas — uso de máscara, álcool em gel, tudo — só funcionam, mesmo considerando a sua somatória, partindo do pressuposto de que não há aglomeração. São insuficientes nesse contexto, com milhares de jovens em um mesmo prédio fazendo prova", afirma. Faz sentido.

Tanto que, depois que enviei todos os documentos para a leitura do doutor Hélio Bacha, ele reparou que há uma recomendação, logo no início dos protocolos, para que não sejam contratadas para a equipe de aplicação pessoas do grupo de risco. "Ora, se não houvesse perigo, qual seria o problema disso, não é mesmo?", indaga. Também não encontro coerência.

Tira máscara, põe máscara

"Máscaras de proteção facial: seu uso é obrigatório conforme definido pelo decreto estadual. Leve máscaras adicionais para troca frequente. Leve saco plástico para acondicionamento e/ou descarte de seu material de proteção utilizado (máscaras, luvas etc). Não descarte no [aqui pularam alguma coisa e ficou por isso mesmo, sem revisão como em "covit"] em área comum". Ao lado do pedido para levarem álcool em gel "para uso pessoal", o texto acima completa tudo o que os candidatos receberam sobre os cuidados na pandemia. E nele impera a imprecisão.

Se o uso de máscara é obrigatório o tempo todo na sala de prova e se ninguém deve permanecer em corredores e afins, os vestibulandos poderiam comer durante a tarde de prova? Ou levar alimentos seria arriscado, inclusive por exigir a retirada da máscara? Esta foi uma dúvida que chegou até esta colunista. Achei justa.

"O que esses pais estão pensando? Que seus filhos ficarão desnutridos em algumas horas de prova?", me devolve o professor Uip em tom espantado, quando lhe transmito a pergunta . "Algumas atitudes seriam erradas até em calçadas", continua. Daí lhe explico que entendo a preocupação, porque querendo ou não, algumas pessoas chegam a ter hipoglicemia se não ingerem nada por um período longo. Desde que vestibular é vestibular, a moçada leva um lanche.

Sem contar a necessidade de hidratação. Reza a fisiologia humana que basta o organismo ficar de 1% a 2% desidratado para a sede aparecer e que, mesmo antes desse sinal, o cérebro já sofre com a falta de água, se atrapalhando em suas funções cognitivas tão desejáveis nesse dia D, sendo que a previsão do tempo para o próximo domingo é de chuva e clima bastante abafado na capital paulista. Mas não valeria a pena insistir nesse clima.

Não valeria até porque, relendo os benditos protocolos da Vunesp — aqueles que os candidatos não leram — , eles matam o apetite dessa curiosidade. "Como as salas de provas são organizadas com um distanciamento de 1,5 metro entre as carteiras", está escrito ali, "será permitida a retirada da máscara por um curto período de tempo."

Aí me pergunto: que curto período de tempo seria esse? E se alguém, a toda hora, der goles em garrafinhas e mordiscar algo? Para muitos, não haveria problema: os vestibulandos geralmente levam um chocolate. Ninguém fica 15 minutos comendo um chocolate, é o raciocínio. E essa distância seria a mesma que encontramos entre as mesas de restaurantes, onde todos permanecem sem máscaras. O importante seria higienizar bem as mãos com álcool em gel antes e depois. Tudo bem então?

Mas... — eu tenho sempre um "mas" — e sobre as máscaras adicionais para trocas frequentes? Recorro ao médico Antonio Bandeira que, além de membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Infectologia e coordenador do serviço de controle de infecção do Hospital Aeroporto, em Salvador, na Bahia, é considerado expert no assunto.

E ele então dá a orientação que faltou aos 4.000 e tantos candidatos desta vez e que será útil para todo e qualquer vestibular presencial nestes tempos: "No caso de máscara cirúrgica, a proteção dura no máximo quatro horas. Se for de pano comum, ela irá durar menos, cerca de três horas. Então, em uma prova de seis horas, é para levar no mínimo duas." No mínimo.

Isso porque o candidato deveria somar a essas duas aquela máscara que usará para chegar até o local da prova ou enquanto aguardar a mesma. Talvez seja o caso de acrescentar uma delas para a volta para casa. E o doutor Bandeira também reforça a questão do álcool em gel. "Nunca, nunca mesmo, esse jovem deveria tocar na máscara, seja para trocá-la ou para baixá-la na hora de comer, sem higienizar suas mãos."

Quando o assunto é máscara, porém doutor Hélio Bacha insiste no ponto: "É preciso ter bom senso. Esses protocolos funcionam quando não há tanta gente reunida. Caso contrário, seria simples: as pessoas poderiam até frequentar teatros e estádios de futebol só porque estariam de máscara e passando álcool em gel." Vale refrescar a memória que a preocupação, nesse aspecto, valeria para o transporte público em São Paulo e outras situações. Repito: faz sentido.

No gabarito, a resposta certa pode ser encrenca

O professor David Uip se pergunta o que as pessoas querem. "Querem acabar com os vestibulares, é isso?" Compreendo. Precisamos de algum vestibular. No entanto, penso que a pergunta exata, refletindo a angústia geral, seria se as pessoas querem acabar com os vestibulares presenciais que acontecerão agora, com os casos de covid-19 em ascensão.

O médico pede para eu conferir um detalhe dos protocolos da Vunesp, que fizeram o Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina do ABC escolher essa fundação para a realização do seu vestibular. "Ele é assinado por um grupo de profissionais e todos os nomes estão ali, com responsabilidade e transparência" diz. E diz a verdade.

No entanto, pesquiso: não há nem sequer um signatário infectologista ou epidemiologista. Ao menos, o que está documentado no papel é que o colaborador responsável pela "análise das medidas sanitárias deste estudo" é um profissional de área administrativa de uma empresa correta, com mais de 30 anos de existência, dedicada a promover a "redução acentuada das perdas por reclamações trabalhistas, sensível diminuição de acidentes durante a jornada de trabalho e eliminação de multas relativas à Medicina e Segurança do Trabalho". Respeito. Mas, salvo meu engano, seria essa a expertise necessária para reunir milhares pessoas em plena pandemia?

"Sem dúvida, seria preciso buscar profissionais de saúde com muita experiência em doenças contagiosas", opina o doutor Hélio Bacha. "E medir a questão custo-benefício. Se a gente pensar só em aglomeração, os hospitais fechariam, porque eles afinal aglomeram pessoas, de médicos a enfermeiros, passando pelos doentes, inclusive infectados pelo novo coronavírus", exemplifica. "No entanto, os hospitais precisam ficar abertos, porque toda decisão de custo-benefício em um momento desses passa por uma reflexão sobre política", conclui.

Nesse caso, Hélio Bacha se refere à Política com "p" maiúsculo, aquela palavra que honra sua origem grega, significando aquilo que pertence a todos nós, cidadãos. Pensar no bem de todos. Sinto o peso da nossa responsabilidade. Que prova imensa é a que nos impõe o bom senso!

Nota final da Vunesp

A fundação foi procurada mais de uma vez. Não puderam me atender, não sei se pelo prazo de um dia ou se por qualquer outra razão. No entanto, me enviaram prontamente os esclarecimentos abaixo que publico na íntegra:

"A Fundação Vunesp informa que realizará neste domingo, 22 de novembro, a prova para a Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) seguindo todos os protocolos de aplicação, referendados pelas recomendações das autoridades sanitárias e assinados por uma empresa idônea e especializada na área da saúde.

Os candidatos estão divididos em prédios com entradas amplas e ingressarão em turmas escalonadas, em intervalos de 30 em 30 minutos, sendo divididos os prédios em blocos e andares para facilitar a distribuição dos candidatos e evitar aglomeração num mesmo espaço físico. Cada uma das salas recebera no máximo 30% de sua capacidade, com distanciamento de 1,5 metro entre os candidatos. Serão seguidas todas as medidas de higienização do espaço físico, bem como haverá a obrigatoriedade do uso de máscaras durante todo o processo de aplicação das provas e disponibilização de álcool em gel, entre outras medidas.

Em atenção à fase verde em que se encontra a capital, a Vunesp aplicou provas para outras instituições de ensino neste mês, sendo de pleno êxito o trabalho e com o devido respeito a todos os procedimentos necessários para oferecer segurança a todos os candidatos.

Sobre a alimentação dos candidatos, esta será respeitada e com o uso do tempo necessário. Reiteramos que não houve qualquer ocorrência em relação à alimentação nos vestibulares com provas já realizadas neste mês."